A última sobrevivente do Titanic morreu domingo (31/5), aos 97 anos. Sem querer, ela marcou uma efeméride. O maior navio do mundo e a belle époque morreram no ano em que ela nasceu.
Millvina Dean era um bebê na noite de 15 de abril de 1912, quando, depois de bater num iceberg, o navio mergulhou nas águas geladas do Atlântico. Viajavam no colosso 2.220 pessoas, 1.517 das quais morreram. Houve 706 sobreviventes. Salvaram-se também a mãe e o irmãozinho, de apenas dois anos, mas o pai morreu afogado.
A bela época, na tradução do francês, não durou nem meio século, mas foi um período riquíssimo em invenções tecnológicas que tornaram a vida cotidiana bem menos difícil, como a bicicleta, o automóvel, o avião, o telégrafo, o telefone.
Também para as expressões culturais, literárias e artísticas, aquelas quatro décadas forma memoráveis. Geraram a art nouveau (arte nova), o impressionismo e uma nova arquitetura. Até os cabarés foram palco de expressões culturais inesquecíveis.
Até o cancã teve ali seu esplendor. No século 16, a palavra francesa cancan, vinda da expressão latina quamquam (conquanto que, todavia, contudo) designava apenas o falatório universitário ou muito barulho por nada, mas veio a denominar a dança alegre, ruidosa e atrevida, surgida nos cabarés franceses por volta de 1830, marcada por chutes no ar, dados pelas dançarinas enquanto erguiam e sacudiam as saias.
Para a dança não ser proibida, foi preciso inventar a calcinha, mas este é um capítulo da moda que merece mais do que este simples registro. Os pelos púbicos não podiam ser públicos. De todo modo, a calcinha e o sutiã também são obras da belle époque.
Sacrifícios humanos
Como sempre, os escritores se anteciparam. As Flores do Mal, a maior obra de Charles Baudelaire, tinha rendido ao autor uma condenação por obscenidade, mas a belle époque o resgatou depois de morto, como fez também com Honoré de Balzac, que morrera em 1850, décadas antes da eclosão do movimento. Paul Verlaine, Arthur Rimbaud e Anatole France engrandeceram a belle époque e foram seus contemporâneos. Este último morreu em 1924 e no ano da tragédia do Titanic publicou Les dieux ont soif (Os deuses têm sede). A capa de uma das edições traz Marianne, o símbolo da França, sem sutiã, como sempre. Marianne foi adotada como símbolo da Revolução Francesa por ser contração dos dois nomes femininos preferidos pelos mais pobres, Marie e Anne.
Titanic, de James Cameron, lançado em 1997, mostra homens educados cedendo a vez nos botes salva-vidas às senhoras e às crianças, enquanto morriam afogados, ouvindo violino e bebendo, resignados.
Para se ter uma idéia de como hoje a época é feia, demos uma olhada na falta de educação dos marmanjos em estádios, shows, cinemas e outras aglomerações.
O Titanic e a belle époque morreram juntos. Daqui a apenas três anos a dupla catástrofe completará um século. É hora de reler Os deuses têm sede. Embora modernos, estamos oferecendo sacrifícios humanos todos os dias aos novos deuses, como o imperador asteca Montezuma explicava aos espanhóis.
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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é coordenador de Letras e de teleaulas de Língua Portuguesa; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e A Língua Nossa de Cada Dia (ambos da Editora Novo Século)