Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O tráfico e a cobertura jornalística

Não são poucas as matérias jornalísticas a envolver traficantes, assim como também são fartas as notícias sobre violência. Poderemos dizer que elas são de ‘interesse da população’, embora possamos trazer ampla argumentação de que tais fatos têm outros interesses, para além do público leitor. Aliás, as motivações jornalísticas sempre se escondem por trás desse incógnito e difuso ‘interesse dos leitores’, em nome do qual a imprensa justifica toda a sua atividade. Nem entraremos no mérito dessa discussão, que abriria um leque de argumentos cansativos e nada compensadores. Mas, a tomarmos como verdade que esse ‘serviço público’ estaria a serviço dos leitores, então certos fatos que aparecem na mídia ficam sem explicação.

Desde sexta-feira (9/11), os jornais dão conta da prisão de jovens de classe média alta, suspeitos de estarem envolvidos no tráfico de drogas. Foram nove jovens que, segundo as investigações, compravam drogas nas favelas e negociavam em academias, festas rave, boates, colégios, universidades, na praia e até pela internet. Fotos e detalhes foram trazidos, bem como as declarações de policiais, tais como as do secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame: ‘Não é quadrilha de usuários, mas de traficantes. A sociedade precisa refletir sobre os valores familiares. Não se trata de problema de segurança, mas social (…).’ (Folha de S.Paulo, 9/11/07).

O que ganha o público?

Já é de causar estranhamento o fato de a referida matéria mencionar que ‘um dos acusados, estudante de design industrial, foi algemado dentro da Universidade Estácio de Sá, no centro’. O curioso é observar que a mesma matéria alude ao fato de que ‘a polícia acusa o estudante de psicologia Bruno Pompeu D’Urso, 18, de ser o líder do grupo’. Contudo, não é mencionada a universidade em que estuda. Estamos, pois, diante de dois pesos e duas medidas, para sermos brandos na avaliação.

O jornal da TV Bandeirantes, dando cobertura ao mesmo fato, piora a situação: um jornalista, em frente à sede da Universidade Estácio de Sá, no centro do Rio de Janeiro, mencionou que o estudante foi preso dentro do estabelecimento de ensino. Há de se reconhecer que tiveram cuidados e pudor: o nome da instituição não foi dito, ‘apenas’ mostraram a imagem em tela plena.

Não podemos considerar este tipo de trabalho um ‘jornalismo sério’. Em nome da informação – duvidosa, pois nada acrescenta –, danos morais são provocados em uma comunidade. Sim, uma universidade é composta por estudantes, professores, funcionários e muitas outras pessoas que, apesar de não terem a menor relação com o fato, são atingidas pela matéria. Pessoas que trabalham e estudam honestamente e que se vêm envolvidas. Isto é informação? O que o ‘público interessado’ ganha com esta informação?A mídia não pode ser ingênua – e se o é, pior ainda: a quem interessa a imagem de uma universidade denegrida?

Leitura equivocada

O que ganha, não sabemos, mas o que perde é muito: desde os tempos gregos, a prática do ‘bode expiatório’ é um ritual que se renova: mata-se um ‘bode’ para redimir os homens, ele derrama o seu sangue e a sociedade se ‘purifica’, imaginariamente, julgando que aquele ‘bode’ é o responsável por todos os seus males. De tempos em tempos lá se vai um ‘bode’ para o sacrifício sem que nada mude.

Sabemos não ser função da imprensa mudar a sociedade, mas também a ela não cabe a escolha dos ‘bodes expiatórios’. Enquanto lançar o foco sobre elementos circunstanciais e deixar de analisar aquilo que é, de fato, importante, teremos uma sociedade, no mínimo, descentrada. Ou cínica. O caráter de um jovem é forjado pela família. A questão é bem mais grave, pois atravessa valores e comportamentos da socialização da cena moderna. Atribuir-se responsabilidade a uma Universidade por tais fatos é não se ter, minimamente, os pés na realidade. A leitura será ingênua, ou interessada? Em qualquer caso, equivocada. Mas a mídia, até onde sei, tem de dar conta da realidade. Caso contrário, ela se constitui em mais um veículo de deformação do que já está para lá de deformado.

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Ensaísta, doutora em Teoria Literária pela UFRJ, professora titular de Teoria Literária da Universidade Estácio de Sá e das Faculdades Integradas Hélio Alonso