O vídeo disponível no link http://youtu.be/-ew99GAifb0 exibe o depoimento de K. T., cidadão afro-americano ativista e sem-teto, que fala sobre a sua percepção de igualdade. Foi feito na noite em que Noam Chomsky fez seu discurso no Occupy Boston. Naquela noite, milhares de pessoas na Dewey Square, praça localizada na artéria central da cidade e centro financeiro de Boston (onde funcionam os principais escritórios), estavam ali para escutar o intelectual, filósofo, cientista cognitivo e ativista de 83 anos, professor emérito do Departamento de Linguística e Filosofia do MIT, uma das mais respeitadas instituições de pesquisa e ensino da tecnologia e ciências dos Estados Unidos. Identificado ideologicamente com o socialismo libertário e o anarquismo, Chomsky, o pai a linguística moderna, pode ser tido, para os norte-americanos, como equivalente ao que o filósofo e educador Paulo Freire é (ou deveria ser) para os brasileiros. Olhando entre os vários aspectos que os unem, mas principalmente a psicologia da linguagem e a sua relação com o poder.
Em seu forte discurso de alguns minutos, Chomsky fez uma detalhada explanação da história da economia atual, os efeitos dos negócios sobre a política e como o mundo é de fato dividido em uma plutonomia, isto é, onde aqueles que detêm a maior parte da riqueza têm mais poder e influência na política. Ele também detalhou como a desregulamentação, a tributação injusta e outros sintomas do atual estado da economia dos Estados Unidos surgiram através do aumento do financiamento das campanhas de políticos por empresas desde 1970. Como teórico crítico da mídia (autor da lista das Dez Estratégias de Manipulação Através da Mídia), ele também não deixou de comentar as percepções distorcidas do movimento Ocuppy, que foi ignorado pelos principais canais de notícias durante três semanas, e o viés negativo por parte da mídia que cobriu o movimento.
Perspectiva racial
Seus estudos de 60 anos são tomados como exemplo por vários linguistas que analisam obras clássicas de literatura, como Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll, para explicar como o uso das estruturas sintáticas pode produzir significados ilógicos através de formas lógicas – os jogos da linguagem – caracterizando um estilo de literatura “sem sentido” ou a “pseudo-literatura”. É atribuída a ele a comparação de personagens aparentemente e ideologicamente antagônicos naquela obra a “republicanos” e “democratas” para criticar o sistema político norte-americano, no qual os partidos seriam essencialmente facções de um único partido – o dos negócios. Ele reconhece que o fenômeno Obama tem importância considerável na história social e política norte-americana. Mas cita o Brasil e a eleição de Lula – “um cara de origem camponesa, sindicalista, que nunca foi à escola… presidente do segundo maior país do hemisfério…” – como exemplo concreto de se fazer diferença na política, “o que é inconcebível nos Estados Unidos”.
Tudo isso para dizer que foi assim que conheci essa figura interessante que me deu a entrevista para o vídeo, declarando que estava na Dewey Square naquela noite para ouvir e ver Noam Chomsky. Se fôssemos considerar o conceito de identidade racial, nada teria com ele em comum. A parte melhor da entrevista foi dada em off. Filho de um ex-jogador famoso jogador de basquetebol, K.T, disse que gostaria de ter estudado Engenharia Nuclear, mas não teve oportunidade. A falta de qualificação é um problema para inserção no mercado de trabalho. “E não bebo, não fumo, não cheiro.”
Foi através dele que fui introduzida ao Occupy The Hood, que havia explodido dois dias antes em Boston dois quarteirões adiante da Dewey Square. O movimento dos indignados dos bairros (o hood) agrega participantes numa perspectiva racial e é formado por comunidades afro-descendentes e outras residentes nas periferias – como asiáticos e também latinos.
Chamada para afrodescendentes
É nos bairros onde a crise de Wall Street mais impacta. A volatilidade das bolsas de valores ou a concentração cada vez maior de quem tem mais capital reflete no dia-a-dia da comunidade. É nesse agora novo território político que os afro-americanos têm fala e discutem questões como a violência juvenil, a violência policial, empregabilidade, educação e racismo; onde a comunidade se organiza para ações comunitárias de apoio a questões específicas das mulheres, aos homens na prisão e ex-detentos, conscientizam sobre o engajamento civil e o registro como eleitor, sobre o destino correto do lixo, voluntaria para ações em hospitais, abrigos, creches etc.
Occupy The Hood se espalhou rapidamente por várias cidades. Rappers e ativistas de Nova York se consideram iniciadores, mas o fato é que o movimento explodiu quase instantaneamente em vários pontos do país e sem precisar de planejamento de ações concatenadas, como as estratégias usadas pelos conservadores do Tea Party. Dois pontos de convergência nacional são Los Angeles e Chicago, cidades que levaram algumas décadas absorvendo a grande migração de africanos e seus descendentes fugindo dos conflitos raciais no sul – algo em torno de 6 milhões, de 1910 a 1970. As mídias sociais são usadas como canais de comunicação coletiva: blogs,Twitter e Facebook,cujameta nesse último é conseguir 1 milhão de assinantes até fevereiro de 2012 (iniciativa de Detroit). Organizado nacionalmente e a nível local, o movimento vem ganhando força e recebendo inúmeras doações de simpatizantes. O dinheiro doado está sendo investido principalmente em mídia, mobilização e alimentos.
O movimento tem pelo menos três feições e o termo também está sendo usado tanto para referir atitude de acadêmicos afro-americanos doutores da Harvard que ganham voz na praça comum aos indignados em geral, quanto aos grupos negros focados em trazer as minorias para dentro do Occupy Wall Street-Boston. O movimento dos bairros, como de Roxbury, o bostoniano que mais concentra a população afro-americana da cidade e onde viveu Malcom X, também já saiu da toca e realizou uma marcha ao encontro da concentração em Dewey Square. O fato é que Occupy The Hood se tornou uma chamada para todos os afrodescendentes se reunirem em prol de um mundo melhor.
Ações desconfortáveis para Obama
Inibido pelas polícias e determinações municipais, algumas iniciativas tem sido esvaziadas. O movimento também já fez inúmeras prisões e vítimas de violência policial durante os protestos. Mas também já realizou algumas ações concretas contra o sistema financeiro dos bancos, a ganância e a corporatização da América, como o Move Your Money Day, incentivando consumidores a cortarem os laços com os grandes bancos e a abrirem contas em bancos locais e regionais. No mês passado, mais de 650 mil novas contas foram abertas em cooperativas de crédito de forma espontânea, segundo a Credit Union National Association. O grupo comercial que representa as cooperativas de crédito também informou que esse número é o equivalente a toda a movimentação financeira do ano de 2010. As ações políticas mais ousadas incluem a adesão às marchas mais recentes do Occupy Walt Street. A exemplo da Occupy The Capitol (sede do Congresso), para pressionar os republicanos a desbloquearem a pauta para passagem de projetos de interesse social e Occupy The White House, o que torna as ações bastante ousadas e desconfortáveis para a administração de Barack Obama num ano que antecede as eleições presidenciais.
A versão original do vídeo em inglês, cujo título é Occupy Boston – Black Perspective on Equality –, pode ser vista no youtube no link http://www.youtube.com/watch?v=xB0JzCG3qKs. A versão no link http://youtu.be/-ew99GAifb0 tem legendas em português.
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[Ana Alakija é jornalista, Boston, EUA]