Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Olhar engajado contra a insensatez

Alta, cabelos longos e ondulados, parece ter escolhido a discrição como estratégia. No inverno de 2013, Laura Poitras passeou tão suavemente a sua câmera pela Redação do GLOBO que quase não foi notada durante a edição da série de reportagens sobre a espionagem americana no Brasil e na América Latina. Rodava “Citizenfour” (“Cidadãoquatro”), documento cinematográfico sobre o fim do mundo da privacidade ilimitada.

O conteúdo dos arquivos vazados por Edward Snowden, ex-analista de sistemas da agência americana de segurança nacional (NSA, na sigla em inglês), surpreendia até porque confirmava antigas suspeitas: Estados Unidos, Grã-Bretanha, Canadá, Austrália e Nova Zelândia – o autodenominado grupo dos “Cinco Olhos” – construíram um sistema de vigilância planetária no silêncio dos algoritmos.

Um dos desafios de jornais como O GLOBO, “The Guardian”, “Washington Post” e a revista alemã “Der Spiegel”, naquele inverno de 2013, foi contar como o velho complexo industrial-militar da Guerra Fria se transformara num conglomerado de segurança digital, lucrando no negócio da espionagem em escala global, sem controle e transparência. Outro foi lidar com o monumental volume de dados na habitual corrida contra o relógio: no caso do GLOBO, entre análise, checagens e impressão da primeira reportagem da série cronometraram-se 96 horas. Cuidados foram adotados, entre eles o critério de não exposição de informações que pudessem identificar agentes e deixar sua vidas em risco.

Cada código da NSA creditava razão ao senador democrata Frank Church, que 38 anos antes alertara sobre essa agência: “Não restará privacidade tamanha é a capacidade de se monitorar tudo: telefones, conversas, telegramas, o que for. Não haverá lugar para se esconder.”

Revelava-se a existência de 12 “estações” da NSA na América Latina, com Brasília em destaque no mapa de “interesses estratégicos” de Washington para espionagem. Poitras deslizava suas lentes pela redação do GLOBO, com o olhar engajado de quem marcha contra a insensatez na política. O resultado é “Citizenfour”, obra inspiradora na luta pela liberdade.

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José Casado, do Globo