O convite que recebemos é bem simples. Somos convidados para uma festa democrática, de comemoração do 20º aniversário do jornal O Bocão. Nesse mundo globalizado, em que tudo aparenta ser do conhecimento de todos, quase ninguém sabe o significado desse jornal. O Bocão vai além do aumentativo de boca e da referência ao indivíduo que fala alto e o que não deve falar. Nascido para ser jornal de bairro, O Bocão hoje é importante voz do povo de Paulista (PE), uma vizinha cidade do Recife. O que se iniciou com 1.000 exemplares, nas últimas edições atingiu 3.000, em periodicidade cujo pêndulo gira conforme o dinheiro em caixa, do fundador. Há 58 números.
Dissemos voz do povo, quase dissemos A Voz do Povo, e contra a nossa vontade caímos numa contradição para o que desejávamos simples. O Bocão é fruto da resistência e da resistência e da resistência, da paciência e da paciência e da paciência de um só homem. José Amaro Correia, ou Amaro, ou Mário, ou Mário Sapo, em suas diferentes versões de nome, é o nome desse resistente.
Que ele não escute isto que dizemos. Socialista de formação, militante político por vontade própria e do movimento estudantil em 1970, ele com certeza deveria ser contra essa… ‘mistificação, sabe?, esse absurdo, entende?, esse individualismo, essa, isso…’, e enquanto procurasse a palavra mais própria com as mãos, com os olhos grandes, injetados, que lhe deram o carinho e alcunha de Sapo, ele passaria a resgatar, a restituir, que ninguém é ninguém sozinho; melhor, num jargão, que todo ato é ato coletivo, que o povo é o povo e maior, sempre. Concedamos, porque é verdade, colaboradores o ajudam, aqui e ali. O fato, no entanto, é que O Bocão é mesmo, principal e fundamentalmente, fruto da incansável resistência de um só homem. Deste, Mário Sapo, que agora entrevisto.
Mário me olha de frente e não me vê. Às vezes pode ver fantasmas, vultos, se puser a cabeça de lado, ele me diz. No melhor dos dois olhos, ao virar a cabeça, ele percebe sombras. Mas nada trágico, ele procura aparentar. Faz piada, broma sobre isso. ‘Hoje eu acredito que um caubói atira sem mirar o bandido. É caubói com desvio de retina’. E assim, por hábito, fala como se me visse, e quando afirma algo mais sólido, vira o rosto, não para ouvir a minha voz, mas para sentir o vulto da minha sombra.
Abaixo-assinado
– Mário, o que é O Bocão?
– Quando nasceu, adotou os princípios de ser um jornal democrático e de cultura popular. E não mudamos, até hoje. O jornal veio porque pretendia ser a expressão de um grupo de moradores que estava impedido de falar em rádio, jornais, e precisava reivindicar saídas para os problemas de Jardim Paulista. O bairro não tinha espaço nem voz. A direção era feita por mim, Fred, Geraldo Magela e Dede, com o apoio dos moradores de Jardim Paulista.
– Quem pagava o jornal?
– Quem bancava era o grupo. A Casa da Criança, em Olinda, ajudava muito, porque imprimia O Bocão sem cobrar. Agora, papel, arte e distribuição eram nossas. De casa em casa, e nas ruas. Mas não era aleatória. Nas ruas, escolhíamos os comerciantes, porque o analfabetismo era muito grande, e no comércio tem sempre alguém que sabe ler. Os pontos de referência, nas ruas, eram os comerciantes. Em 1985 e até hoje.
– Hoje, quem banca a despesa?
– O Sindicato dos Servidores banca a reprodução, e é de grande ajuda. O resto sou eu. O expediente, na página 3, é só pra constar. Os colaboradores são eventuais e permanentes. Josebias, Mexicano, Paulo André, Antonio Campos, José Francisco, e Aloísio, o Gordo. Também Wilde Gonçalves.
– E os anúncios, as jóias da coroa?
Mário sorri e responde:
– Olha, a gente prefere anúncio sem dinheiro. O grande comerciante não quer nada com a gente, um deles já disse na minha cara que não vai alimentar quem é contra o sistema. O pequeno comerciante paga 20 reais…
– Vinte reais?!
– Sim, paga 20 reais e quer influir na linha do jornal. Grita: ‘Eu estou pagando!’. Então a gente somente aceita anunciante que paga com serviço. Agora mesmo, um deles vai transportar as pessoas para festa dos 20 anos. Outro cede o espaço do restaurante para festa.
– E políticos?
– Os políticos deixaram de ser aceitos porque eles querem interferir na linha do jornal. Com mais força que o pequeno anunciante, porque pagam tudo. Alguns deles já me disseram: ‘Vamos nos juntar, vamos nos juntar que eu sustento o jornal. O jornal vai ter tudo o que quiser’. Ainda hoje, se eu quiser, o jornal tem dinheiro, mas nas condições que o político profissional deseja.
– Já houve matérias de O Bocão que tiveram repercussão na sociedade?
– Sim. Eu lembro….
E aqui pedimos licença a Mário, para informar aos leitores algumas. A primeira delas mereceria uma novela:
Vereadores embolsam milhões e trabalham para defuntos
No ano de 1996, que pode ser qualquer outro ano, em Paulista os vereadores legislaram voltados para o Cemitério da cidade.
Dos projetos aprovados durante o ano, 75% foram para a concessão de mausoléus e ossuários no Cemitério da cidade. As sessões da Câmara deveriam ser presididas por Zé do Caixão. Os outros projetos também não têm nenhuma relevância para o município, são 24% de concessão de ‘título de cidadão’ e de nomes de rua.
O orçamento da Câmara fica em torno de 6 milhões de reais por ano. Como ao todo foram 57 projetos aprovados, tivemos de custear, para cada um, mais de cem mil reais… Cem mil reais para doação de um mausoléu, cem mil reais para um ossuário.
Em outra, que poderia gerar uma continuação da novela, se diz:
A Câmara Municipal, que nunca realizou concurso público, chegou a nomear a filha de um vereador, uma criança de 10 anos de idade.
Para atender as necessidades dos vereadores, existem 1476 contratados, 615 efetivos, 260 cargos comissionados… São 18 pessoas para um birô. Um dia deve ter a duração de 108 horas para caber todos os funcionários dando o expediente de 6 horas.
E mais, de outro número, de outra edição:
Somos milhares, somos a maioria, e o Prefeito está conosco. É isso aí, Prefeito, continue com a sujeira. A imundície é a nossa sobrevivência.
Assinam: gabirus, ratões, baratas e insetos em geral da praia.
Semear sonhos
– Sim, eu lembro.
E cita denúncias de nepotismo na Prefeitura, divulgação de salários dos deputados na Assembléia Legislativa, e realização de pesquisas eleitorais que acertaram o resultado, contra as previsões de institutos de pesquisa ‘sérios’ e bem pagos.
– Você nunca sofreu ameaça?
– Sim, eu recebi já avisos. Quando o jornal entrou numa luta contra o monopólio dos transportes em Paulista, me disseram: ‘Você vai se morto’. Duas vezes fui agredido. Numa delas, fui prestar queixa à Delegacia de Polícia. Quando cheguei lá, vi que os agressores eram da polícia. Eles ficaram rindo.
Então, porque sei que ele está com 62 anos, pergunto como está, ele, a sua pessoa, José Amaro Correia, Mário, o Mário Sapo.
– O Bocão está ótimo. Neste sábado, nós completamos 20 anos.
– Eu me refiro a você, Mário.
– Eu estou bem. Os meus exames deram tudo normal. Tudo na faixa de normalidade, para um diabético.
Então pergunto se depois de tanta luta alguma vez ele não pensou em desistir, ele, que sei estar com problemas circulatórios, pressão alta, e que piora todas as vezes em que se emociona, como na véspera destes seus 20 anos, de O Bocão.
– Desistir? Nunca! Às vezes me dá uma preguiça. Mas dá e passa.
Então ele me conduz, tateante, devagar, até o portão. Às vezes vira a cabeça de lado para ver o meu vulto, quem sabe, algum traço. Talvez não veja mais sequer a minha sombra. E não diz. Mas entendo. Devo ser mais real que o seu sonho, que um dia ele escreveu num poema:
Vivo semeando o sonho
Do fim da pobreza
De todas as crianças terem o direito
De brincar e sorrir
Vivo a semear o sonho
Do nascer igual
Perante a natureza dos homens.
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Jornalista e escritor