Quando comecei em jornalismo, um dos maiores sonhos de grande parte de meus colegas era ser correspondente de guerra. Na época, era a parte heróica da profissão: tomávamos por base Rubem Braga, correspondente do Diário Carioca junto à Força Expedicionária Brasileira durante a Segunda Guerra, no teatro de operações da Itália.
Mas nem todos os correspondente ativeram-se a contar os fatos reais; foram influenciados pela própria posição política, muitas vezes faltando com a verdade. Um exemplo típico pode ser encontrado na Guerra Civil espanhola (1936-1939). Jamais outra concentrou tantas cabeças coroadas do jornalismo mundial, de André Malraux (1901-1976) a Ernest Hemingway (1899-1961), de Arthur Koestler (1905-1983) a John Dos Passos (1896-1970), de Ilya Ehrenburg (1891-1967) a George Orwell (1903-1950).
A Guerra Civil espanhola colocou Mussolini e Hitler de um lado contra Stalin do outro (ainda era desconhecido no mundo o que acontecia na União Soviética stalinista). Este cenário contrapôs fascismo e democracia. Tratou-se, então, de um momento de escolher posições.
Da Europa e das Américas, milhares de jovens confluíram voluntariamente à Espanha, prontos a lutar e a morrer pelo triunfo da democracia ou do comunismo. Naquela época, o poder de fascínio do ideal comunista tinha conquistado não somente operários e camponeses, mas sobretudo os intelectuais progressistas, que sempre representaram a presa mais fácil de ser seduzida pelo novo que avançava.
‘Muito brando’
O destino desse conflito foi diferente de todos os outros. Ao fim de cada guerra, as mentiras dos derrotados são desmascaradas enquanto as dos vencedores tornam-se história. Na Espanha aconteceu o contrário: já que a imprensa internacional, democrática e comunista, estava unanimemente alinhada contra os insurgidos e seus aliados nazistas e fascistas, a luta sangrenta e desesperada dos defensores da República espanhola foi transformada numa romântica epopéia enquanto a vitória conseguida pelos adversários tornou-se ‘de triste memória’.
Hoje, porém, com maior conhecimento dos fatos, pode-se afirmar que se os adversários de Franco tivessem vencido, seria como cair da panela na brasa.
A grande contribuição para confundir os acontecimentos foi a dos correspondentes de guerra. Estes, segundo suas posições ideológicas, construíram cenários fantasiosos e contrastantes. A ideologia é sempre inimiga da verdade. Os correspondente citados escreviam com o coração e não com os olhos, contando aquilo que pensavam e não o que viam. Todos se empenharam com paixão e com paixão mentiram – faziam até disputas de quem mentia mais.
Arthur Koestler, que depois se tornou um campeão do anticomunismo com o livro O zero e o infinito (Darkness at noon), na época era agente do Comintern infiltrado numa agência jornalística britânica e recebia ordens do comunista Willi Müezenberg (1889-1940). Este, jogando seus textos no lixo, gritava-lhe: ‘Muito brando, muito objetivo. Conta que os fascistas esmagam os prisioneiros com carros blindados, que os queimam com gasolina. Faça com que todos os leitores prendam a respiração’. E mostrava o recorte de um jornal ‘inimigo’ alemão contando que a milícia ‘vermelha’ distribui bônus no valor de uma peseta, e que cada bônus dava direito a um estupro. Em Málaga, a viúva de um franquista tinha sido estripada e junto ao seu cadáver encontraram 64 bônus. Willi, agitando o tal recorte aos gritos, dizia: ‘Veja como fazem os inimigos e aprenda companheiro. Isso é jornalismo. Isso é propaganda’.
Notoriedade e sucesso
Até hoje quem entra no Harry’s Bar de Veneza o faz com um silêncio reverente. Este era o local em que Hemingway embriagava-se de martinis secos jogando os copos no Gran Canale. Pois é, até o mítico autor de Por quem os sinos dobram cometeu seus escorregões. Noticiava a iminente vitória republicana menos de dois meses antes daquela de Franco. Suas matérias omitiam as execuções que os comunistas impunham aos anarquistas.
As carnificinas reais abundavam em ambas as partes, mas as descrições jornalísticas muitas vezes exageravam a ‘verdade’, como numa crônica do estadunidense Jay Allen:
‘Mulheres e homens na arena, em fila e com os braços levantados. Às quatro da manhã as metralhadores dos franquistas começaram a atirar. Atirarão por ininterruptas doze horas. Mil e oitocentas pessoas foram fuziladas. No final o rio de sangue tinha um palmo de altura. Há muito mais sangue no corpo humano do que se possa imaginar’.
O único a mover-se contra a corrente foi George Orwell, que procurou revelar e indicar com exatidão as causas da vitória de Franco. No seu livro Homenagem à Catalunha acusa a esquerda radical de não ter querido reconhecer que o totalitarismo não existia somente à direita; de ter ignorado que o verdadeiro inimigo de Stalin não era Franco, mas a própria esquerda radical; e que os comunistas estavam mais preocupados em desbaratar os radicais de esquerda que em vencer o franquismo.
De certo a notoriedade e o sucesso nem sempre acompanham a verdade. Como lembrou um dia o jornalista francês Lucien Bodard (1914-1998), autor de artigos exageradamente romanceados sobre a revolução em São Domingos: ‘Caros colegas, sempre terei mais leitores que vocês’.