Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os critérios de escolha

Afinal quais são os critérios adotados pelos jornalistas para escolher as fontes?

Nesta semana, dois âncoras do telejornal da RBS-SC, afiliada da Rede Globo, entrevistaram uma obstetra sobre parto. A médica disse uma bobagem atrás da outra, prestou um desserviço, não colocou uma única evidência e defendeu impressões próprias baseada em achismos e mitos populares ignorando recomendações da OMS. A matéria causou desconforto entre os profissionais que se baseiam em evidências e veem o parto como um evento que deve ser tratado com mais humanidade. Abaixo, a carta do obstetra Marcos Leite, esclarecendo os jornalistas para que evitem esse desserviço.

E agora, como fica?

Quem assistiu a entrevista com a médica, a doutora escolhida para prestar esclarecimentos, fica mal informado. É assim quando o jornalismo deforma a informação [ver aqui].

Métodos não farmacológicos e eficazes

‘Prezados senhores,

Foi com grande surpresa que assisti à reportagem sobre tipos de parto hoje no Bom Dia Santa Catarina. Infelizmente, a colega que participou é bastante preconceituosa, está completamente desinformada e prestou um grande desserviço à população.

Vejamos por que:

1º. Ao afirmar que a dor do parto inviabilizaria o parto normal, desconhece a realidade apresentada em pesquisas científicas que demonstram uma maior satisfação com o parto normal em mulheres que não foram submetidas à analgesia. Na maioria dos serviços onde se disponibiliza a analgesia, a taxa de mulheres que a utiliza fica em torno de 13%. Em ambientes acolhedores, como nas salas PPP (a mulher fica durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato no mesmo ambiente), principalmente quando há uma banheira disponível, esta taxa reduz bastante. Para as que necessitam de analgesia, podemos utilizar vários métodos não farmacológicos, também provados como eficazes, como, por exemplo, acupressura, musicoterapia, movimentação, presença de um acompanhante, presença da doula etc.

Nada de fantástico ou mágico

2º. Ao afirmar que muitas vezes a cesárea é mais normal que o parto por via baixa comete um crime (com o agravante de, quando questionada, somente se referiu às possíveis complicações do parto normal – omitindo os riscos da cesárea). Em primeiro lugar porque a cesárea é considerada uma grande cirurgia. Há um aumento na perda sanguínea, risco de lesão de órgãos maternos, risco de problemas respiratórios para o bebê (No setor privado, é uma das principais causas de internação de bebês em UTI); em longo prazo, aumenta em quatro vezes o risco de placenta acreta (depois do nascimento do bebê, a placenta não descola do útero, levando muitas vezes à necessidade de retirá-lo (histerectomia) e é uma das causas comuns de morte materna). Em segundo lugar porque quanto mais se estuda mais evidências surgem comprovando as vantagens do parto normal sobre a cesárea, tanto para a mulher, quanto para o recém-nascido. Hoje sabemos que durante o trabalho de parto e parto a mulher libera um coquetel de hormônios que vai agir nela e no bebê, contribuindo para o vínculo afetivo, aleitamento materno e para a própria capacidade de amar deste bebê. Concordo com ela que em algumas circunstâncias, infelizmente não tão raras em países como o Brasil, a assistência ao parto pode se transformar em violência contra a mulher, mas o remédio está em humanizar esta assistência e não operar (sacrificar) a mulher que não tem nenhuma culpa pelo equívoco do modelo.

3º. Demonstrou um enorme preconceito e total desconhecimento de causa ao infantilizar o parto narrado pela Gisele. A Gisele, por opção própria, com profundo conhecimento das evidências científicas, optou pelo parto domiciliar. Escolheu uma parteira para assisti-la, contratou os serviços de uma doula e pariu na banheira, sem analgesia medicamentosa. Esta opção está sendo cada vez mais adotada nos países desenvolvidos. Na Holanda, por exemplo, a taxa de parto domiciliar é de 37%, sendo que 52% dos partos são atendidos por parteiras. A Gisele mora em uma casa de alvenaria, sua banheira foi cheia com água da bica e ela deu à luz da mesma maneira que a imensa maioria das mulheres historicamente o fez. Não tem absolutamente nada de fantástico, fantasioso ou mágico. O desconhecimento da colega é tão grande que na mesma cidade em que ela mora e atua profissionalmente é cada vez mais comum a opção pelo parto na água – aqui realizado tanto em casa como em maternidade no setor privado.

Informações preconceituosas e danosas

4º. Continuou demonstrando despreparo e preconceito ao dizer que parto de cócoras é para índio e que o períneo das ‘ocidentais’ não está preparado para o parto de cócoras. Na maternidade do Hospital Universitário (referência nacional e internacional de assistência humanizada) a taxa de partos de cócoras é de 73%, em sua grande maioria mulheres que não tiveram nenhum tipo de preparação para isto. Associado ao parto vertical está a menor taxa de episiotomia (corte do períneo, outrora utilizado de rotina), em torno de 5% e, conseqüentemente, de períneos íntegros depois do parto.

Há alguns anos, ficou provado cientificamente ser a posição de cócoras a mais fisiológica para o parto. Dentre várias vantagens, e contrário ao que a colega afirmou, é nesta posição que o períneo da mulher está mais protegido. Há um aumento de 28% no diâmetro da bacia (osso) e o maior relaxamento da musculatura do períneo. Ao abrir a bacia e relaxar a musculatura há uma maior facilidade na saída do bebê. O mais importante é que as pesquisas foram feitas com mulheres de todo o mundo, mas nos trabalhos considerados como corretos do ponto de vista epidemiológico não havia sequer uma índia! Foram inglesas, norte-americanas, canadenses, argentinas e alemãs, dentre outras nacionalidades, provando que qualquer que seja a etnia o parto vertical vai proteger o períneo.

Espero como cientista, médico, pai e cidadão que a direção deste programa tome as medidas necessárias para correção de informações tão inadequadas, preconceituosas e danosas à população deste estado, assim como desrespeitosas com todas as famílias catarinenses que tiveram o privilégio de parir seus bebês em casa, na água e de cócoras.

Marcos Leite dos Santos, obstetra e epidemiologista.

Consultor do Ministério da Saúde, na área técnica de saúde da mulher.

Presidente da ReHuNa – Rede pela Humanização do Parto e Nascimento.’

‘Para Mudar o Mundo é Preciso Mudar a Forma de Nascer’ (Michel Odent)

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Jornalista, Osório, RS