Os detalhes são apaixonantes e, para quem observa as coisas com vagar, reveladores. Mas os ‘idiotas da objetividade’, na divertida expressão de Nelson Rodrigues, só veem a superfície dos fatos. E os leitores, vendo tão pouco, logo desistem e vão ver mais por conta própria.
Para que o leitor veja (depois), o jornalista precisa fazer mais do que ver, precisa (antes) observar, palavra que traz os étimos latinos ob, diante de, e servare, guardar, vigiar, salvar. Em resumo, tem que estar presente ou apoiar-se em fontes seguras.
Com as inovações tecnológicas, paradoxalmente caiu a qualidade do texto. Um pintor poderia reproduzir com precisão a inauguração do Canal de Suez, sem foto alguma e sem ir lá, apenas lendo com atenção os autores que relataram o grande acontecimento em várias línguas.
Com o advento de fotos e de imagens em movimento (cinejornais, telejornais, documentários etc.), leitores e telespectadores passaram a ver com os próprios olhos e descobrir que muitos não tinham visto o que relatavam – as imagens asseguravam o contrário – ou simplesmente mentiam para leitores, ouvintes e telespectadores.
Vínculos sutis
Os agentes policiais viram objetivamente dois cadáveres entrelaçados em certo bangalô de Petrópolis (RJ), no dia 24 de fevereiro de 1942. Os corpos eram do escritor Stefan Zweig e sua mulher Charlotte.
Uma chilena, amiga dos dois, que a esse tempo morava na mesma cidade serrana, viu mais: que a mulher era mais generosa do que o marido, afinal cumpriu as ordens recebidas, administrou-lhe o veneno e só depois tomou sua dose, mas antes puxou sua cama para perto da dele, morrendo abraçada ao amado morto, o que dificultou o desenlace dos corpos.
Esta boa observadora não integrava, porém, a horda numerosa dos idiotas da subjetividade, que também os há aos milhares, na mídia e fora dela. Chamava-se objetivamente (o que é atestado por registros burocráticos, certamente fiéis, certidões etc) Lucila Godoy y Alcayaga, e era filha de um professor de latim e grego, e de uma costureira que fazia bordados muito bonitos. Tornou-se mais conhecida pelo pseudônimo de Gabriela Mistral. Três anos depois ganharia o Prêmio Nobel de Literatura.
Dois anos antes daquela tragédia, Stefan Zweig visitou uma escola, no Rio, onde estudava um menino de oito anos, o futuro jornalista Alberto Dines. Exatamente em 25 de agosto desde ano, seu registro profissional no Ministério do Trabalho completa 57 anos.
Dines, na biografia que fez do suicida, observou dois fatos que dizem um pouco mais: nas noites frias de Petrópolis, o casal dormia em camas separadas. E os suicidas jantaram antes de se matarem! Viu ainda vínculos de sutis complexidades entre o fechamento das histórias de Zweig e a cena montada para fechar a própria existência: ‘Em suas histórias, Zweig não suportava a tensão dos desfechos. O seu foi distendido e quieto. Graças a Lotte’. (Morte no Paraíso, Editora Rocco, 3ª edição ampliada, p. 479).
Sem volta
As cenas políticas brasileiras oferecem profusão de detalhes, mas a mídia parece interessada apenas nos grandes murais.
Ei, câmeras do Senado, deixem em close, nem que seja por poucos segundos, o rosto dos senadores que falam ou calam. Queremos o esgar involuntário de José Sarney, o olho furioso de Fernando Collor, o cabelo quase em pé de Pedro Simon sendo chamado de parlapatão, quando recebe ordens de engolir e digerir da forma que melhor lhe apraza o que diz contra Sarney, de quem foi ministro da Agricultura e que agora ataca. Já Collor, que fez a campanha atacando o antecessor (Sarney), hoje o defende. Na era dos espertos, depois de feito o pacto com quem derrotara naquela eleição – isto é, Lula, o atual presidente –, Collor uniu-se aos antigos desafetos e todos têm agora o mesmo objetivo, entendem? Só pode ser o de nos ferrar. (Aqui preciso usar este verbo e não o outro, por respeito aos leitores, que, entretanto, designam a mesma ação pelo outro).
Queremos detalhes. Detalhes hão de revelar o que surrupiam do distinto público, com a ajuda involuntária, talvez, da mídia. Este escritor viu um fac-símile do bilhete de renúncia de Jânio Quadros. Ali havia duas vírgulas indevidas, uma delas em tremenda falta de lugar. Mas antes de ser político, o presidente foi professor de português e era autor de uma gramática. E dominar a norma culta da língua portuguesa, na fala e na escrita, era uma de suas mais notáveis características, não?
Rogério Magri, então ministro de Collor, sabia o que era imexível e usou corretamente o prefixo ‘i’ para qualificar como intocável o plano do presidente a quem servia, coisa, por exemplo, que o senador Aloizio Mercadante ignora, pois, desconhecendo o significado das palavras, renunciou à renúncia. Jânio pôde fazer isso, como explicou Augusto Nunes na Veja Online da semana passada: ‘Também a renúncia configura um ato de vontade unilateral e sem volta, ensinou o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, ao receber a mensagem de Jânio Quadros em 25 de agosto de 1961. Os parlamentares janistas souberam tarde demais que aquilo não era passível de discussão. A assinatura sob o texto transformara Jânio em ex-presidente’.
Já o senador Mercadante, aproveitando o embalo, revogou também o irrevogável.
Em prestações
No Legislativo, as coisas estão desse modo. No Executivo, as agendas não são mais indeléveis. No Judiciário, porém, e na memória do povo, tomara que as sentenças finais sejam realmente irrecorríveis e inapeláveis porque, se a moda pega, teremos, não um país passado a limpo, mas um país com versões da História arrumadas de acordo com as conveniências de uns poucos.
O ex-presidente da República e atual senador Fernando Collor de Mello, daqui a pouco, por recorrer do julgamento que o tirou da presidência da República ou por recorrer de novo ao voto, poderá recomeçar o que não pôde concluir.
E para fechar o texto com a volta aos detalhes das cenas finais, já notaram que políticos brasileiros não se suicidam, por mais que seja o desmascaramento ou a tragédia do que perpetraram? No máximo, renunciam, mas assim mesmo para escapar de alguma coisa pior.
Se tentarem, talvez cometam um suicídio de mentirinha, como aqueles narrados pelo escritor espanhol Enrique Vila-Matas em Suicídios exemplares (Editora Cosac Naify). Num deles, o personagem desce do sexto para o primeiro andar porque lhe falta coragem de voar de tão alto, e fratura a tíbia e o tornozelo. E diz: ‘Se as coisas continuarem assim, logo vou me atirar do segundo andar, e, então, após a inevitável visita ao hospital e posterior volta para casa, vou me atirar do terceiro, depois do quarto…’.
Alguns senadores não perceberam, mas se suicidaram na semana passada. E diante das câmeras da TV Senado. Mas só vão saber na próxima vez em que recorrerem aos eleitores. Como o personagem de Vila-Matas, estão se suicidando em prestações. Ou, melhor dizendo, em votações. Ou, melhor ainda, em comissões.
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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é coordenador de Letras e de teleaulas de Língua Portuguesa; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e A Língua Nossa de Cada Dia (ambos da Editora Novo Século)