Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Os equívocos e acertos da colunista

Nos últimos anos, parece ter aumentado o interesse da imprensa pelas questões relacionadas com a comunidade LGBTTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros). Além das reportagens, os jornais também têm publicado vários textos opinativos. Às vezes, esses textos são explicitamente homofóbicos, como o de Carlos Alberto Di Franco, que critiquei neste Observatório (ver ‘Opus Dei ataca homossexuais e os jornais dizem amém‘). Em outras ocasiões, os autores não são ou não desejam ser homofóbicos, mas revelam desconhecer os assuntos sobre os quais escrevem. É o caso do texto de Danuza Leão, publicado no domingo (7/2).

No texto ‘Como se tornar uma drag queen‘, publicado em vários jornais, a exemplo de A Tarde e Folha de S.Paulo, Danuza criticou a criação de uma escola LGBTTT em Campinas e, ao mesmo tempo, defendeu a entrada de gays nas forças armadas. Concordo com alguns trechos do texto e discordo de outros. Como as discordâncias são bem mais incisivas, começo por elas:

Ser drag queen, segundo Danuza, é uma vocação que vem do berço; portanto, não precisa ser ensinada. Em primeiro lugar, essa idéia pressupõe que todas as drags já nasceram assim. Algumas até podem ter essa impressão, que é, na verdade, a velha naturalização de nossas vocações e orientações sexuais (que são por nós naturalizadas, mas que não têm quase nada de natural, exceto em vocações específicas do mundo artístico).

Diferenças devem ser destacadas

Não podemos generalizar nada quando tratamos de sexualidades e gêneros. É claro que alguém pode apreender a ser drag queen mesmo quando adulto. Todos aprendem a ser drag. Da mesma forma, todos aprendem a ser homo ou heterossexuais. A diferença é que aprendemos de formas mais ou menos diferentes. Por isso, minha afirmação não pode ser lida como também uma generalização.

Um adulto como eu pode aprender a ser drag e nunca ter se sentido uma delas desde a ‘terna infância’. Aliás, quando eu era criança, por exemplo, sequer existiam drags. E olha que eu tenho 38 anos.

Danuza provavelmente pensa assim porque diz, adiante, em seu texto, que ‘não existem diferenças entre os seres humanos, que as preferências sexuais de cada um são pessoais, e não dizem respeito a ninguém’.

Ao contrário dela, penso, assim como centenas de pesquisadores da área, que existem, sim, enormes diferenças entre os humanos, e ainda bem que elas existem, pois são elas que dão graça à vida. O discurso da igualdade, usado por Danuza com o melhor dos propósitos, na verdade vai contra o respeito à diversidade, uma diversidade que é tão ampla que pode, a rigor, fazer com que cada um de nós crie um modo de viver a sua sexualidade e reinvente o seu gênero.

Além disso, quando Danuza diz que as preferências sexuais são pessoais e que não dizem respeito aos outros, parece flertar, novamente, com a idéia de que nascemos com essas preferências, que elas são inatas e que, portanto, devem ser respeitadas. Não creio que esse seja o melhor argumento para defendermos o respeito à diversidade. Para termos os mesmos direitos, precisamos destacar e festejar as nossas diferenças.

Perspectivas pós-identitárias

Nossas ‘preferências sexuais’ (eu prefiro, na falta de termo melhor, nossas orientações sexuais), sejam elas quais forem, são construídas desde a nossa fecundação. Ou melhor, uma das orientações é imposta desde a gravidez e, por essa e outras questões, acaba vista como algo puramente natural. Essas construções, em boa medida, foram realizadas pelos outros.

Por outro lado, dizer que as nossas preferências não dizem respeito aos outros é despolitizar o sexo. Ao contrário, penso que, cada vez mais, o sexo é politizado (basta lembrar a recente declaração do general Raymundo Nonato Cerqueira Filho, indicado para ocupar uma vaga no Supremo Tribunal Militar, para quem os gays seriam incompetentes para comandar uma tropa). Portanto, não podemos cair na tentação de realizar qualquer despolitização do sexo.

Em seu texto, Danuza diz que a escola LGBTTT, ao invés de integrar, segregará e, em seguida, liga essa questão com as cotas para negros nas universidades, consideradas por ela ‘um preconceito absurdo; o resultado será a segregação, em seu mais alto grau’.

O que está em pauta aqui é a validade ou não das chamadas ações afirmativas e das estratégias políticas essencialistas, muito utilizadas pelos movimentos sociais brasileiros. Ainda que eu tenha várias críticas a essas estratégias, precisamos entender que, num primeiro momento, sem elas pouca coisa teria mudado nos últimos anos para as mulheres, negros e homossexuais.

No entanto, precisamos nos perguntar até quando devemos usar tais estratégias. Atualmente, estou mais interessado em pensar como seria possível aliar estratégias essencialistas, afirmativas, com perspectivas não essencialistas, pós-identitárias. Como essas duas perspectivas poderiam andar juntas, em um mesmo movimento?

Mundo gay é preconceituoso

Sobre as cotas: elas não têm gerado, a meu ver, a segregação nas universidades. Pelo contrário, o ingresso de afro-descendentes, ao menos na UFBA, tem contribuído para que a própria universidade seja repensada. Digo isso pela minha própria experiência. Fui professor substituto antes e depois das cotas e agora estou na condição de professor efetivo, fase na qual é possível verificar os efeitos das cotas na UFBA. Diria mais: os não cotistas estão aprendendo muito com os cotistas. Ao invés de segregação, estou vendo o reconhecimento do outro e um promissor respeito às diferenças, não apenas raciais, mas, inclusive, de gêneros/sexuais.

Agora, destaco minhas concordâncias com Danuza. Ela pergunta: por que a escola LGBTTT não ensina ‘também a trabalhar com mecânica, carpintaria, eletricidade, ou a consertar um ar condicionado? Por que existem pessoas que acham que o mundo gay só é capaz – na cabeça deles – de fazer trabalhos `artísticos´?’

Ora, se o movimento LGBTTT defende que a entrada de gays nas forças armadas, por que uma escola voltada para a comunidade dedicar-se-á a ensinar apenas profissões comumente atribuídas aos seus pretensos e imaginários integrantes?

Outra concordância, ainda que parcial: ‘desconfie dos homofóbicos: dentro de muitos deles mora um gay ainda adormecido’. Pode não existir um gay adormecido, mas algo move o homofóbico. O que é exatamente esse algo? Dezenas de coisas, muito difíceis de enumerar. Dificilmente uma resposta daria conta de tudo para que outra generalização pudesse ser formulada.

Em outro momento, Danuza frisa que ‘mundo gay é, às vezes, bem preconceituoso’. Concordo plenamente. Há muito preconceito do ‘mundo gay’ com gays mais afeminados, lésbicas mais masculinizadas, travestis, transgêneros, transexuais, intersexos, simpatizantes, mulheres e, também, para com os bissexuais e os heterossexuais. Também há muito preconceito para com aqueles que não desejam se enquadrar em nenhuma categoria, aqueles que preferem e festejam o livre trânsito entre as inúmeras formas de vivenciar os seus sexos, gêneros, desejos e práticas sexuais.

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Como se tornar uma drag Queen

Danuza Leão (Folha de S.Paulo, 7/2/2010)

Soube que vai ser inaugurada em Campinas, com o apoio do Ministério da Cultura, a primeira escola gay do Brasil: a Escola Jovem LGTB, para lésbicas, gays, transexuais e bissexuais.

Nela serão dados inúmeros cursos como expressão literária, expressão cênica e expressão artística, além de um inédito, para formar drag queens. Já começa aí o preconceito: por que não ensinar também a trabalhar com mecânica, carpintaria, eletricidade, ou a consertar um ar condicionado? Por que existem pessoas que acham que o mundo gay só é capaz – na cabeça deles – de fazer trabalhos ‘artísticos’?

Cada um, seja bailarino, lutador de boxe, cabeleireiro ou bombeiro, tem o direito de escolher com quem vai para a cama, se com alguém do mesmo sexo ou de outro. Detalhe: a escola está aberta também aos heterossexuais. Será que eles acham que vai ter fila de héteros querendo estudar lá?

Essa história de dar aulas para ensinar como se tornar uma drag queen chega a ser ridícula; a vocação vem do berço e não precisa de professor para ensinar. Mesmo nascendo e crescendo numa fazenda no interior do Acre, uma drag, desde sua mais tenra infância, sabe se ‘montar’ como ninguém.

Ela pega um pano, amarra na cintura, de umas frutinhas faz um colar, passa colorau na boca – mais vermelho que os batons de St. Laurent – e na falta de um sapato alto, anda na ponta dos pés; é com ela mesmo, e é preciso ser muito ignorante para pensar que para ser drag é preciso aprender.

Ao que me consta, o objetivo da humanidade é integrar, fazer com que os humanos de qualquer raça, cor ou religião se sintam como na realidade são – iguais. Se os colégios só para meninas ou só para meninos já não eram recomendados, o que dizer de um dirigido preferencialmente ao mundo gay? Então por que não pensar também em colégios só para brancos e outros só para negros?

As cotas nas universidades já são de um preconceito absurdo; o resultado será a segregação, em seu mais alto grau, e me admira que as autoridades hajam permitido essa aberração. O Brasil tem mania de ser moderninho, mas é bom não esquecer Hitler; é assim que começa.

O mundo é cruel, disso já se sabe, e as crianças, ainda mais cruéis que os adultos. Se eles já fazem maldades com o coleguinha que parece ‘diferente’, imagine do que não serão capazes quando crescerem, sabendo que os ‘diferentes’ estão agrupados, juntos, num só colégio. Aliás, desconfie dos homofóbicos: dentro de muitos deles mora um gay ainda adormecido.

Se a moda pega, veremos no futuro anúncios de edifícios e condomínios exclusivamente para gays, separando cada vez mais o que deveria ser integrado. Essa integração só poderá acontecer quando todas as pessoas do mundo – inclusive o mundo gay, que às vezes é bem preconceituoso – aprenderem que não existem diferenças entre os seres humanos, que as preferências sexuais de cada um são pessoais, e não dizem respeito a ninguém.

Por falar nisso, o exército dos EUA está abrindo as portas para os assumidamente gays poderem servir ‘à pátria que eles tanto amam’, segundo o presidente Obama; como somos atrasados. Ensinar a conviver com a diversidade, isso é que as escolas e o Ministério da Cultura deveriam fazer.

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Jornalista, professor adjunto do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos e do Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em Cultura e Sociedade, da Universidade Federal da Bahia (UFBA)