‘Em outubro de 2001, uma estudante foi encontrada morta a facadas num cemitério de Ouro Preto (MG). Os investigadores e a mídia alegaram que a morte foi causada por um jogo de RPG. Essa abordagem gerou uma onda de fúria contra o jogo (inclusive com a tentativa de proibir os livros de RPG) e, em seguida, uma série de críticas aos que associaram o jogo ao crime e ao satanismo, como se pôde ver nas edições 145, 146 e 148 do Observatório da Imprensa.’
Com o parágrafo acima, iniciei um artigo publicado neste Observatório da Imprensa em janeiro de 2005, demonstrando que os meios de comunicação, mais de três anos depois do crime em Ouro Preto, continuavam uma campanha de desinformação, relacionando indevidamente os role-playing games (mais conhecidos como RPG) com o que algumas autoridades supunham ser magia negra e rituais satânicos ligados a um homicídio.
Na primeira semana de julho deste ano, os acusados do crime em Ouro Preto foram julgados. Nos dias que antecederam o julgamento, a mídia repetia ad nauseam as alegações do Ministério Público. No domingo de madrugada, Fernanda Lizardo avisou no Twitter que o julgamento havia terminado e os acusados foram absolvidos.
O papel da imprensa
Algumas horas depois, começaram a surgir nos portais de notícias informações sobre a absolvição. Em sua maioria, mal-escritas, noticiando a absolvição e, em seguida, fazendo supor que o julgamento estava em andamento ainda, ou repetindo as alegações da acusação (que, a essa hora, já haviam sido descartadas pelos jurados), como fica evidente nesta matéria da Folha Online. No Globo, comentários aleatórios sobre pontos mencionados no processo estavam misturados ao texto que informava a absolvição.
O Uai chegou ao ponto de, na nota sobre a absolvição, colocar apenas um link para o verbete RPG da wikipedia. Deveria ter explicado o jogo no corpo do texto, já que toda a argumentação (mal-sucedida) do Ministério Público foi focada em relacionar RPG ao homicídio.
O Terra afirmou, ao noticiar a absolvição: ‘Os quatro jovens, entre eles a prima de Aline, foram denunciados pelo Ministério Público como adeptos de rituais de RPG, praticantes de cerimônias satânicas e usuários de drogas.’ A obsessão em atribuir o caso ao RPG (que é um jogo, não um ritual) e a supostas cerimônias satânicas (o que se entende por satanismo? E não é crime professar religião, mesmo que não-monoteísta ou não-cristã) apagou a acusação principal: o homicídio.
Em seguida, houve uma mudança de tom: a imprensa queria saber quem matou Aline e lamentou os oito anos de processo, que resultaram em um caso encerrado sem encontrar o culpado. Isso pode ser visto principalmente no Uai, Super e Ouro Preto. Em momento algum analisaram ou criticaram o papel da imprensa no caso.
Absolvição não apaga prejuízos
Qual deveria ter sido o papel da imprensa neste caso?
A imprensa não deveria ter se contentado em somente transcrever as informações fornecidas pelos investigadores. Houve a opção pela simples reprodução das informações, que foram divulgadas como verdade, embora se tratassem de possibilidades de esclarecimento do caso que poderiam, ou não, ser confirmadas. É o que pode ser conceituado como ‘jornalismo de aspas’, focado em apenas reproduzir as falas das fontes, como se apenas transcrever a fala fornecesse a informação necessária para o entendimento do caso. Esqueceram-se que tanto o inquérito policial quanto a atuação do Ministério Público são focadas na acusação e condenação, portanto, extremamente parciais e tendenciosas. Ao repetirem o que as autoridades falavam, amplificaram a voz da acusação, promovendo uma presunção de culpa que gerou a destruição da imagem dos acusados, num verdadeiro linchamento público.
A imprensa deveria ter pesquisado e criticado as informações recebidas, divulgando as discrepâncias da investigação policial. Se houvesse um mínimo de pesquisa, não haveria a deturpação sobre jogos de RPG. Mais ainda, a pressão da imprensa, expondo os absurdos e preconceitos relacionados ao jogo, obrigaria as autoridades a abordarem outras linhas de investigação, não se restringindo à versão mais fantasiosa delas.
A imprensa deveria ter respeitado tanto a vítima quanto os acusados. A vítima foi desrespeitada quando jornais fizeram a opção pelo sensacionalismo, ao invés de tanto investigadores quanto mídia se dedicarem a esclarecer o crime. Os acusados foram desrespeitados ao serem expostos como criminosos (e não como acusados) e associados a diversos comportamentos tidos socialmente como prejudiciais. Estes anos todos foram de isolamento e perseguição dos acusados: tiveram de mudar de cidade, deixar a faculdade, perderam amigos e o apoio da família. Não há a menor dúvida de que a repercussão do caso na mídia foi fundamental para essa condenação social. A absolvição no tribunal do júri não apaga todos os prejuízos que tiveram nesses oito anos, sendo que a maior parte dessa situação poderia ter sido evitada se a mídia tivesse mais cuidado com a abordagem do caso.
Jornalistas desinformados
A imprensa deveria ter respeitado a inteligência do público. Foram oito anos deturpando o jogo de RPG, presumindo rituais de magia onde não existiam sequer indícios dessa prática, insuflando a condenação dos acusados. Após a absolvição, as matérias passaram a criticar as autoridades e brigar pelo esclarecimento do crime, questionando a postura policial. No entanto, em 2001, quando deveriam ter feito esses questionamentos, preferiram tratar os investigadores como donos da verdade. Dias antes do julgamento, apostavam na condenação dos acusados; após a absolvição, optaram por ignorar oito anos de manipulação e linchamento de acusados, desviando o foco da discussão para a ausência de culpados, procurando fazer com que o público esquecesse o papel vergonhoso que a imprensa teve no direcionamento deste caso.
Como nenhuma dessas responsabilidades foi cumprida pela grande mídia, o resultado é a tragédia que se tornou o caso: autoridades policiais e judiciárias desacreditadas, um homicida não-identificado, uma vítima de crime que não foi solucionado, acusados inocentados, mas com vidas extremamente prejudicadas, jogadores de RPG perseguidos, proposições e leis proibindo a venda ou restringindo a divulgação de livros de RPG.
Além disso, há o fato de que os meios de comunicação aceitaram ser manipulados para incentivar o sensacionalismo, contribuindo para a crise de credibilidade que atinge a imprensa brasileira. Não é de surpreender que as informações mais esclarecedoras sobre o caso tenham vindo não da mídia tradicional, mas de blogs e jornais menores, como fica claro neste post do Felipe Amorim e na entrevista e nesta observação da Fernanda Lizardo: ‘Comecei a cobrir o caso por conta própria depois de muito bater boca com jornalistas desinformados’ (ver aqui).
Linchamento público
É importante deixar claro que as informações sobre o caso mostram que tanto o inquérito policial quanto o processo judicial não foram um primor de eficiência. O Ministério Público chegou a admitir que houve falhas na acusação: ‘Essas falhas foram preponderantes para a sentença. Tentar recuperar provas depois de muito tempo é difícil, os autos e as provas têm que ser feitos na época certa’ (ver aqui). No entanto, tais falhas poderiam ter sido apontadas e corrigidas pela pressão de jornalistas, que deveriam ter questionado as autoridades na época do crime, ao invés de terem atuado como porta-vozes delas, abraçando com fervor a tese (agora desacreditada) da culpa do RPG.
Nota-se, pelas descrições e análises anteriores, que no caso de Ouro Preto não houve o menor respeito ao Código de Ética dos Jornalistas, especialmente art. 4º (‘O compromisso fundamental do jornalista é com a verdade no relato dos fatos, deve pautar seu trabalho na precisa apuração dos acontecimentos e na sua correta divulgação’), art 9º (‘A presunção de inocência é um dos fundamentos da atividade jornalística’), art. 11, II, (veda a divulgação de informações de ‘caráter mórbido, sensacionalista ou contrário aos valores humanos, especialmente em cobertura de crimes e acidentes’), e art. 12. (‘O jornalista deve: I – ressalvadas as especificidades da assessoria de imprensa, ouvir sempre, antes da divulgação dos fatos, o maior número de pessoas e instituições envolvidas em uma cobertura jornalística, principalmente aquelas que são objeto de acusações não suficientemente demonstradas ou verificadas; II – buscar provas que fundamentem as informações de interesse público’).
Este é um caso que não pode ser abafado. Precisa ser estudado a sério, tanto quanto o da Escola Base, para evitar que novas vítimas da imprensa sejam feitas frequentemente, com base no sensacionalismo, na desinformação e na violação do Código de Ética dos jornalistas. Afinal, se a função da imprensa é informar, não se pode ignorar quando os meios de comunicação adotam posicionamentos que permitem linchamento público de acusados e manipulação da opinião pública.
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Professora do curso de Comunicação Social da UFMG, mestra em Direito