Mais uma madrugada de insônia. Apanho um papel e uma caneta e rabisco as primeiras palavras deste texto. Elas se tornam frases que aglutinam idéias, que organizam parágrafos. Uma introdução, um desenvolvimento e uma conclusão. Paro e penso: o que, afinal, escrevo?
Uma rápida esticada de braço até o monte de livros acumulados ao lado da cama há meses (um amálgama curioso que reúne desde Aristóteles até Baudrillard) me revela: o texto que escrevo é um artigo. A informação provém de um dos clássicos do jornalismo brasileiro: Jornalismo Opinativo, de José Marques de Melo. É de lá que extraio o seguinte conceito: ‘Trata-se de uma matéria jornalística onde alguém desenvolve uma idéia e apresenta uma opinião.’
Me dou por satisfeito e tento fechar o livro, mas meus olhos pairam sobre o texto de outra página: a angulagem do artigo é ‘determinada pelo critério de competência dos autores’. São duas linhas de texto que abalam minha auto-estima: serei eu competente o suficiente para escrever um artigo? Acredito que sou, se comparado a estudantes do ensino médio, porém não devo ser tão bom ou experiente quanto alguém com doutorado. E agora? Meu texto é um artigo para uns e para outros não? Seria então um comentário?
Artigo, comentário, crônica…
Felizmente, não sou o primeiro a me debruçar sobre essa questão. Volto para minha pilha e busco o Sotaques d’aquém e d’além mar, de Manuel Carlos Chaparro. É ele que diz que são ‘subjetivas e insuficientes as características apontadas por Melo como diferenciais entre o comentário e o artigo‘. Ufa! Não preciso mais temer ser atacado na rua por alguém que me grite algo do tipo ‘Mentiroso!, Você não é competente para escrever um artigo!’ Relaxo e encerro o texto me dando por satisfeito: escrevi um artigo.
Antes de dormir, releio o que já escrevi. Encontro traços de lirismo nos primeiros parágrafos. Novo pânico. Relembro outro conceito de Melo: ‘Crônica é o relato poético do real.’ E agora? Será meu artigo uma crônica?
‘Chaparro me salvou antes, pode ser que me ajude de novo!’, penso. Revejo a teoria dos gêneros que ele propõe. Ao invés de separá-los em duas grandes categorias separadas pelo binômio informação X opinião, Chaparro propõe uma classificação baseada na estrutura dos textos, já que informação e opinião não se separam. À classe antes informativa, Chaparro chama de relato e aponta o uso de uma estrutura textual narrativa. Já ao antigo texto opinativo, o autor chama de comentário e lhe cede uma estrutura argumentativa. De repente, meu texto passa a poder ser – quem diria! – uma reportagem.
Mais uma vez o releio, satisfeito com a resposta. Mas, espere! Esse texto começou certamente com estrutura narrativa, vindo a tornar-se argumentativo com o passar do tempo. A classificação de Chaparro aponta na coluna o único gênero híbrido e mesmo assim o faz no sentido de ‘ou é um ou é outro’, mas ele próprio nunca menciona textos que mesclam ambas as estruturas.
Coitado do meu texto. Já foi artigo, comentário, crônica, reportagem. Por um tempo vai continuar órfão, senão essa história (isto é mesmo uma história?) não acaba.
Reclassificação forçosa
Nova leitura da minha bibliografia revela: é creditado a Samuel Buckley o posto de primeira pessoa a dividir os textos jornalísticos. De um lado, ele jogou os textos informativos (news) e de outro, o texto opinativo (comments). Buckley acordou em um dia (possivelmente) de sol, no ano de 1702, e teve uma epifania. Chegou à redação do Daily Courant, jornal inglês do qual era diretor, e separou os textos.
Ele não sabia, mas criava, naquele momento, o binômio informação X opinião que ecoaria por anos e anos na teoria do jornalismo, culminando, quem diria!, neste texto deslocado. Se Buckley soubesse o que estava fazendo, teria ele continuado com a inovação, cravando definitivamente seu nome na história? Ou teria ele desistido?
Luis Fernando Veríssimo que me perdoe, mas durante o longo processo de coleta de dados para minha monografia fui obrigado a reclassificar duas de suas crônicas como comentários. A confusão não é só dele: em mais de mil textos pesquisados, apareceu de tudo: artigos que eram crônicas, crônicas que eram notas e reportagens que não eram nada.
Essa variedade de textos me leva a uma observação: classificar gêneros em espécies fixas e dizer que qualquer coisa nova é espécie híbrida é transformar o jornalismo em uma estátua de gesso. A internet, por exemplo, trouxe novas formas de se escrever que as teorias não cobrem.
Nem mesmo as estruturas de Chaparro dão conta deste texto, que começou de um jeito e agora segue de outro. Claro que poderia simplesmente classificá-lo como crônica, mas dizer que tudo que não se enquadra em gênero definido é crônica significa reduzi-la a mera lata de lixo.
Cortar as asas do jornalista
E não digo isso como forma de reclamar que as teorias dos gêneros não são importantes: é apenas a conclusão lógica de uma conversa que tive com excelentíssimo doutor, meu orientador, Otavio Klein, em uma de nossas manhãs de orientação. Dizia ele que toda teoria é feita em cima do que já foi observado, dificilmente sobre aquilo que acontecerá.
No caso da teoria dos gêneros, ela pode ser um impasse, pois limita a criatividade de quem escreve, fazendo com que o jornalista se reduza a meia dúzia de receitas prontas para o mesmo bolo. E o resultado, às vezes, são textos como este, dignos de uma crise de identidade, que um jornalista conservador descartará porque não se encaixa em lugar algum.
Preferível, no caso, é alguém que não saiba o que é, por exemplo, um editorial, mas que consiga escrever um texto argumentativo, impessoal e com a opinião de terceiros. Limitar o texto jornalístico às formas da teoria dos gêneros é cortar as asas do jornalista ou, na melhor das hipóteses, dizer para onde ele deve voar.
P.S. Desisto de classificar este texto. Quem tiver alguma idéia, por favor, comente! Agradeço desde já!
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Estudante de Jornalismo, Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, RS