Recebi um manuscrito com 32 páginas em papel ofício escritas pelo médico capixaba Césio Flávio Caldas Brandão, condenado como o “Monstro de Altamira”, o rumoroso serial killer que castrou e matou várias crianças nesta região do Pará no início da década de 1990. A correspondência me foi enviada em 13 de junho deste ano de uma das celas do Centro de Recuperação de Coqueiros – CRC-PA, mais conhecido como Presídio de Americana. Nela, o médico jura inocência e apresenta detalhes surpreendentes do caso. São relatos extraídos de um processo confuso, movido pela catarse.
A carta ratifica a notícia sobre a prisão do verdadeiro monstro, o mecânico Francisco Chagas, preso no Maranhão, onde se deu a segunda etapa do ritual satânico que vitimou “mais de 40 crianças”. O criminoso, o mecânico Francisco Chagas, confessou ser também autor da primeira fase da matança no Pará, legitimando a defesa do médico que, por ter sido condenado a 56 anos, com trânsito em julgado, está agora brigando pela revisão criminal do processo. Algo complicado em nosso país, principalmente porque, mesmo com o assassino assumindo a culpa no Maranhão, a polícia e o Judiciário do Pará terão que reconhecer amea culpa e investigar direito o caso com base neste fato novo.
Pelo que li e pesquisei, houve uma sucessão de erros do Estado e da mídia contra os direitos fundamentais do cidadão acusado, que terá agora de ralar para tentar provar o que não fez. A família vem tentando, com o senador Magno Malta, que é daquela região do país, uma força política para que o médico aguarde essa bagunça em liberdade. É o mínimo que as autoridades podem fazer por Césio e seu colega de profissão Anísio Ferreira, também condenado no mesmo caso.
A chance de ouvir o outro lado
A bem da verdade, nunca se teve a convicção plena da culpa dos réus. O juiz negou a pronúncia, por falta de provas, mas a decisão foi revista e o médico acabou sendo levado a julgamento. O conselho de sentença também ficou em dúvida, mas diante do clamor público provocado pelo estardalhaço da imprensa que legitimou a acusação policial em letras garrafais, quatro dos jurados votaram pela acusação. Com 4 a 3 no placar favoráveis à condenação, o processo seguiu para as instâncias superiores sob forte pressão da mídia e, finalmente, transitou em julgado.
A questão, agora, é a seguinte: a polícia maranhense, que já soltou todos os acusados presos inocentemente pelo caso, terá que concluir o inquérito sobre o serial killer com a ajuda da polícia paraense, sem erro, e remetê-lo à Justiça para que essa possa instruir o processo, também sem erro, e finalmente levar o culpado a julgamento. Uma vez condenado o verdadeiro assassino, o médico e os demais envolvidos ficam livres. Aliás, ao mandar soltar os réus, por força de um habeas corpus concedido em 2010, o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STJ), classificou o caso como “o maior erro judiciário brasileiro”.
Não me perguntem o motivo pelo qual os réus estão até hoje presos. Se o médico me autorizar a divulgar o teor da carta, o público leigo e a imprensa terão a oportunidade única de tomar conhecimento do que ocorreu, na versão de um dos acusados, para o julgamento justo do caso. Sempre digo que a equidade jornalística de qualquer fato controverso está na oportunidade de se colocar nos dois pratos da balança, a acusação e a defesa, para medir, da forma mais natural possível, qual das duas pesa mais. Como a versão policial já é conhecida do público, essa é a chance que temos de ouvir o outro lado, através de um relato feito pelo réu em tom de desabafo, na primeira pessoa, portanto, sem intermediário.
De vítima a culpado
Por dever de ofício, curiosidade e pedidos de amigos do médico para que fizesse alguma coisa para mostrar ao Brasil as injustiças cometidas – no mínimo, contra os direitos fundamentais do cidadão –, estudei o caso com um único propósito: revelar os erros processuais e os da imprensa. A verdade, a gente nunca sabe onde está, mas após criteriosa análise do caso, cheguei à conclusão de que a espetacularização dos fatos, muito conveniente à imprensa bandida, continua fazendo muito mal ao Judiciário, principalmente nos julgamentos públicos. Não estou aqui afirmando que tudo de errado que ocorre no país é culpa da imprensa porque sou parte dela e sei que se não fossem os jornalistas comprometidos com o interesse público este país já teria ido para o brejo há muito tempo.
O trabalho da imprensa é extremamente importante e indispensável para a saúde de nossa democracia. É preciso ter uma atenção muito grande com os poderes constituídos, principalmente o político e o policial – o primeiro, pela facilidade de se meter a mão no dinheiro público, e o segundo pelo mau uso do distintivo. Não há a necessidade de se trabalhar em um grande veículo de comunicação para cumprir esse papel. Eu, que já trabalhei em muitos deles, hoje sou dono de uma folha de taioba na cidade de Nova Lima, a 22 km de Belo Horizonte, onde venho denunciando a bandalheira praticada pela prefeitura local e já obtive bons resultados ao frear, por exemplo, a doação de áreas públicas para grupos privados em troca de favores e sem qualquer interesse público. Isso é o mínimo que um jornalista pode fazer para a defesa do interesse público.
A experiência me levar a crer que o erro (ou dolo) da polícia e, eventualmente, da Justiça ocorre por incompetência e falta de equilíbrio emocional dos agentes públicos para suportar aos efeitos midiáticos do fato, levando inocentes a pagar por crimes não cometidos. Aliás, foram erros assim que por pouco não me colocaram na prisão no episódio da morte de minha mulher, em 2000, quando a polícia – e a imprensa que a copiou – me transformou de vítima em culpado (A Justiça dos Lobos – Por que a imprensa tomou meu lugar no banco dos réus: Bigráfica, 2009).
Peça dantesca
São também erros desta natureza que levaram a polícia e o MP a falharem no não menos rumoroso Caso Villela, em Brasília, onde a arquiteta Adriana Villela vem sendo acusada de matar os pais (o ex-ministro do TSE José Guilherme Villela e a mulher), num processo vergonhoso para a polícia do DF. Adriana, a exemplo de Césio e outros mais, também me procurou pedindo ajuda. Estudei o seu caso e fiquei horrorizado com o que vi. Mais uma vez, a atuação da polícia e a falta de questionamento da imprensa bagunçaram tanto o processo que, independentemente da culpa ou não da acusada (eu a inocento por falta de provas), o correto seria rasgar tudo que foi feito até o momento e começar do zero. Aliás, se eu fosse juiz do caso faria exatamente isso.
A impressão que tenho é de que a maioria dos nossos jornalistas não está preparada para trabalhar com fatos controversos e de grande apelo popular. O clamor público provocado pelo efeito midiático das publicações de fatos desta natureza revela as ilações fantasiosas, criadas à luz dos holofotes de uma imprensa irresponsável, que retrata fatos sem o mínimo de senso critico. Apenas copia o que ouve e lê, aplicando critérios da polícia, em detrimento dos métodos jornalísticos. Não há esforço cognitivo em benefício do interesse público. Visa ao ibope, ao espetáculo, como se estivesse registrando capítulos de uma novela levada ao ar em tempo real.
Este tipo de jornalismo de baixo nível continua produzindo mitos, falsos ídolos e falsos bandidos com a mesma facilidade que se escreve uma peça dantesca. Veja, em um trecho da carta de Césio Brandão, o que ocorreu no dia 10 de julho de 1993, horas após a sua prisão.
“(…) O delegado telefonou para a Rede Brasil Amazônia de Rádio e TV que noticia com exclusividade que foi preso o Monstro de Altamira, o médico Césio Brandão…”
A busca incessante da verdade
Ou seja, fabricou-se um monstro em questão de horas, como se a notícia retratasse um fato notório, e não controverso, com base na afirmativa de um delegado. O mesmo tipo de noticiário bombástico foi ao ar tempos depois, com a prisão do criminoso confesso dessa história maluca, o mecânico Francisco Chagas. Ele disse ter vivido em Altamira de 1977 a 1993 (o serial killer de Altamira começou em 1989 e terminou em 1993, segundo os registros policiais). O bandido mudou-se em 1994 para São Luís, no Maranhão, quando teve início a segunda etapa da matança, com as mesmas características. Tudo isso relatado à polícia maranhense que, diante das evidências do crime, soltou todos os suspeitos presos erroneamente pela matança de crianças nesta segunda fase do serial.
Não conheço os autos, mas tenho conhecimento de seu conteúdo que me foi revelado por uma promotora de justiça com larga experiência em júri popular. Ela se diz estarrecida com tantos erros. Praticamente decorei a versão do acusado, pela carta que brevemente compartilharei com vocês.. A versão policial é tão abstrata e tênue, que pode ser resumida em cinco linhas. Não há sustentação legal para se falar, por exemplo, em provas. Há um imaginário, do tipo alguém que parece com alguém, conforme o relato de alguém, portanto, sem objetividade jurídica e/ou clareza científica.
A história nos faz lembrar o filme 12 Homens e uma Sentença, produzido em 1957, com o irretocável Henry Fonda. Uma testemunha diz que o réu era o homem que vira nas proximidades do local do crime e leva 11 jurados a condená-lo. Mas, na sala de votação do conselho de sentença, um dos jurados pede provas mais contundentes e ao final os 12 absolvem o suspeito, tamanha era a fragilidade das provas exibidas em juízo. Valeu o senso crítico e a sensibilidade de um entre os 12 jurados para determinar sobre o real e o irreal, o fato e o suposto fato, para convencer os demais de que sem provas não se pode condenar ninguém, mesmo diante da catarse provocada pela publicidade do ocorrido. É exatamente isso que separa o bom do mau jornalismo. A busca incessante da verdade, independentemente do que dizem e do que falam as pessoas. Vale a coerência dos fatos.
Senso crítico e olhar cético
É sempre bom lembrar que fato é um só, não existem dois. Está provado que o autor (ou autores) do crime praticado em Altamira é o mesmo dos cometidos no Maranhão, pela sua peculiaridade, o modus operandi e o perfil das vítimas. Essa é a base da investigação que caracteriza o serial killer. Se alguém assume a autoria destes crimes, resta à polícia confrontar os fatos, efetuar a reprodução simulada dos mesmos, checar datas, deslocamentos do acusado, analisar patologias e laudos criminológicos; debruçar-se sobre os demais apontamentos, conferir tudo. Feito isso, fecha-se o caso. É impossível, à luz do Direito e da natureza, tornar inverossímil algo revelado e provado pela lógica, como os pontos em comum dos achados científicos que nos dão a certeza de que alguém fez realmente aquilo que diz porque o que essa pessoa fala bate com o que foi apurado.
Quanto à imprensa, cobra-se dela apenas o senso crítico e o olhar cético de quem tem a obrigação de questionar aquilo que não lhe é apresentado com a clareza dos fatos notórios.
***
[José Cleves é jornalista]