Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os jornais e suas capas previsíveis

Se por vocação ou por interesse desenvolvido ao longo do tempo, o fato é que o design de imprensa, capas de jornais em especial, fascina-me muito. Lá se vão quase 10 que, numa tarde qualquer, um ex-professor da época da faculdade, Jorge Castegnaro, mudou em parte os planos que tinha para minha carreira.

Entrou o professor sala adentro carregando uma capa do diário paulistano Jornal da Tarde para iniciar uma explicação sobre o que era a tal disciplina de Planejamento Gráfico. Levava ele, porém, uma preciosidade: uma capa de julho de 1982, publicada um dia após a inesquecível derrota por 3 a 2 do Brasil perante a Itália, na Copa do Mundo de futebol. Na página frontal do Jornal da Tarde, a foto de um menino, camisa canarinho no peito e uma lágrima no rosto. No topo da página, a manchete ‘Barcelona, 5 de julho de 1982’ – uma pequena obra-prima do design de imprensa. Daquela tarde em diante concluí que o design devia sempre buscar reinventar os periódicos, com o propósito de surpreender o leitor, ao menos na primeira página. E notem que isso ocorreu há uma década, quando a sociedade do tempo real e do visual era algo incipiente.

Agora, num instante em que os meios de comunicação lutam para ter a primazia de noticiar primeiro e, depois, melhor do que a concorrência, os jornais diários, de um modo geral, não estão sabendo compreender as novas nuances dessa sociedade frenética em que se vive. Em outras palavras, os diários ainda se pretendem dizer que são ‘informativos’, que espelham a realidade e contam o que acontece no dia anterior aos leitores, como se algo muito novo fosse, e não se portam, como deveriam, como ‘interpretativos’. Tome-se aqui o caso das capas de jornais espanhóis em 12 de março de 2004, um dia após os atentados terroristas em Madrid.

De um modo geral, os jornais daquele país europeu estamparam capas como se a notícia dos ataques fosse algo novo – embora, 24 horas depois, até as pedras soubessem o que havia ocorrido. Não deveriam os matutinos ter tentado produzir primeiras páginas mais interpretativas do que informativas? Ou quiseram os diários competir com outras mídias, como rádio, TV e internet, que haviam noticiado o assunto nas horas anteriores com uma vastidão impressionante de dados e tempo disponibilizado para o assunto?

Mais: não deveriam justamente os diários espanhóis (em detrimento dos estrangeiros) ter surpreendido, por estarem mais aptos a compreender os ataques e a identificar e retratar os sentimentos de uma nação inteira? Ou não deveriam justamente os diários espanhóis ter surpreendido justamente pelo fato de estarem em uma nação de onde saem designers e escolas de design que influenciam meio mundo?

A julgar pelas capas dos jornais espanhóis reproduzidas no site do capítulo espanhol da Society of News Design (www.snd-e.org), o resultado final foi lamentável, do ponto de vista visual. Muitos diários apelaram para o lugar-comum, como o ABC (‘Assassinadas 200 pessoas em uma matança terrorista em Madrid’), o El Correo (‘Massacre em Madrid’) e o El Mundo (‘O dia da infâmia’).

Outros se voltaram para a tradicional capa em preto, com uma foto da tragédia ao centro (caso do El Diário Vasco). Já o Diário de Navarra estampou foto de página inteira dos escombros e a manchete ‘Massacre em Madrid’. Se voltarmos ao 11 de setembro americano, é provável que encontremos demasiada semelhança entre as capas dos dias 12 de março e 12 de setembro. Há mais situações de primeiras páginas sem criatividade visual ou editorial que podem ser citadas, mas as ilustrações acima me parecem suficientes.

Impacto da tragédia

Alguns especialistas em design de imprensa, como o cubano Mario Garcia, têm alertado que o futuro dos jornais diários passa mais pela exploração do seu senso interpretativo do que pelo apelo informativo. Do contrário, a mídia impressa factual continuará amargando quedas nas vendas e no volume de publicidade, bem como de audiência global, e, aos poucos, tragada por outros meios mais ágeis, sejam eles digitais ou aqueles que estão conseguindo se reciclar no tempo devido. Em correspondência eletrônica com o signatário, Rodrigo Fino, argentino e designer master da Garcia Media (a holding de Mario Garcia), pondera que surpreender o leitor é uma tarefa diária e que competir com meios audiovisuais é uma luta inútil e desigual. Diz ele:

‘(…) desde o começo, já que não temos movimento, não temos som, não temos, por vezes, cor, não temos interatividade no papel, e somente nos resta o enfoque a ser usado, a profundidade e a análise. Por suposto que estamos vivendo um novo espírito informativo onde a edição é o (grifo no original) processo do jornal e onde o conteúdo volta a ser, por sorte, o centro do cenário. Assim (é bom lembrar que) nem sempre temos um jogo importante nas mãos (como Brasil vs Itália) e, portanto, o desafio está em surpreender o leitor quando não temos essa decisão de campeonato nas mãos. Nessas horas, o conteúdo é a chave e não tanto o desenho’.

Mas, se é o justamente o conteúdo a mola-mestra da discussão, não deveriam os diários espanhóis terem se esmerado mais em interpretar e, logo, produzir capas mais impactantes do ponto de vista das manchetes, dos textos introdutórios e das capas como um todo? Rodrigo Fino argumenta que:

‘(…) creio que, em situações extremas, como um atentado, é difícil opinar sobre como deveriam os jornais ter decidido sobre o que e como publicar. Parece-me, em geral, que a falta de informação ou a manipulação das informações que diziam respeito ao atentado acabaram confundindo jornais de qualidade, como El País (de Madrid), que assumiu, com base em informações do governo, que a organização terrorista ETA teria sido a autora do crime. De fato, na edição do domingo posterior ao atentado o próprio diretor de redação de El País contou que recebeu uma ligação de José Maria Aznar (primeiro-ministro espanhol) no qual ele confirmava a participação da ETA. Isso indica como é difícil trabalhar quando o ofício do jornalista se mistura à dor humana coletiva e onde as fontes manipularam as informações’.

É certo, como diz Rodrigo, que o trabalho jornalístico não é nada fácil em um caso como esse, de comoção coletiva, mas cabe dizer que é justamente nessas horas extremas que as técnicas aprendidas nas faculdades e no dia-a-dia das redações, bem como as experiências pessoais de cada membro da equipe de um jornal, devem valer para, no mínimo, a confecção de capas mais audaciosas.

Se, num instante desses, não soubermos lidar também com a pressão do tempo, então é possível que estejamos na profissão errada. Para além disso, argumenta-se que, se havia intensa dúvida e jogo de informações quanto à autoria dos atentados, não deveriam os diários ter focado isso – e, sim, os impactos da tragédia daquela manhã em Madrid, buscando veicular fotos com ângulos inusitados e relatando pequenos e grandes dramas pessoais, por exemplo.

Romance combalido

O leitor, a esta altura do texto, pode estar se perguntando ‘qual a moral dessa história’? Os jornais diários estão perdendo, e rapidamente, a habilidade de surpreender o leitor. De modo lamentável, é provável que o professor Jorge Castegnaro ainda utilize o exemplo do Jornal da Tarde como algo valioso de ser estudado em uma sala de estudos contemporânea. Não que o professor esteja errado. Talvez ele não tenha mesmo capa melhor para mostrar, apesar de, nesses 10 anos, ele tenha se mantido mergulhado no design de imprensa, em busca de outra primeira página digna de ser levada para uma classe e de provocar impacto profundo em ao menos um de seus alunos – como ocorreu comigo.

Neste caso, sinto-me impelido a concordar com Juan Melano, outro argentino especialista em design, e que igualmente debateu comigo esse assunto via e-mail, quando escreve que:

‘Vejo nos diários, entendendo-os como um grupo humano de jornalistas e não como empresa informativa, uma endogamia generalizada. São jornalistas escrevendo para jornalistas, que se esquecem do público leitor, mas sempre recordando que existe outro público, os anunciantes. Não sei se interpretação é a palavra que busco para definir para onde deveria ir o jornalismo factual, mas, definitivamente, é uma palavra relacionada com o leitor, com suas emoções, com sua inteligência e seu conhecimento do mundo. Já vai longe o tempo em que as manchetes garrafais gritavam as notícias. Hoje, talvez as manchetes estejam apenas sussurrando. E isso não é ruim, já que o diálogo com o público pode partir de igual para igual. E é essa igualdade que pode levar-nos a um novo romance com nossos leitores’.

Essa idéia do diálogo pode ser o eixo da questão. Como pode haver diálogo com o leitor se, na manhã seguinte, o jornal diário oferece a esse mesmo leitor um material sobre um fato do qual ele se inteirou ainda no dia anterior? Como pode haver diálogo se, em muito ou em pouco papel, os jornais trazem somente aquilo que já foi noticiado exaustivamente pelas mídias eletrônicas? Enfim, como pode haver diálogo com capas como essas dos diários espanhóis e de outros tantos que chegaram às bancas e às casas no dia 12 de março?

Claro que essa questão é bem mais ampla e há outros tópicos para serem debatidos. Mas, mesmo que minimamente, esse texto contribui para despertar debate que, em última instância, trata do futuro da mídia impressa e de como manter e/ou incrementar o romance de que fala Juan Melano e que está cambaleando cada vez mais.

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Jornalista, professor de Design de Imprensa e de Novas Mídias na Universidade Paranaense (Unipar), em Cascavel (PR); e-mail (marciofernandes@unipar.br)