No calendário de eventos, o mês de junho traz três datas que se inter-relacionam: 7 de junho, Dia da Liberdade de Imprensa; 10 de junho, Dia Internacional da Liberdade de Imprensa; e 14 de junho, Dia da Liberdade de Pensamento. Sobre o assunto, reproduzo, abaixo, material de palestra que proferi em 1995.
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Em 1695, o parlamento inglês decidiu não renovar o Licensing Act, uma espécie de lei que admitia a censura prévia à imprensa. Essa não-renovação de um dispositivo legal que permitia a censura aos jornais na Inglaterra é tida como a primeira demonstração de uma cultura de liberdade de Imprensa de mais de trezentos anos.
Falar de ética é falar de liberdade. Só que, em nome da liberdade, muitos excessos têm sido cometidos, muita falta de ética tem sido praticada. Até porque é somente em um ambiente de liberdade que se pode abusar dela. Da liberdade para a libertinagem é um pulo. E, ao dar esse salto, jornalistas e radialistas passamos por sobre a ética, muitas das vezes pisando nela, com o que o impulso torna-se maior, e mais nos afastando dela.
Instintos menores
A maior parte dos jornalistas não dá esse salto além, mas um bom número encontra justificativas para escrever, filmar, dizer ‘coisas’ que, pelos padrões do mundo hoje, não conduzem a estágios gradualmente mais elevados de civilização. É assim que alguns se tornam pistoleiros da palavra, mercenários da imagem, amparados na frágil argumentação de que é isso que o povo quer, é disso que o povo gosta. Programas de rádio e televisão e páginas de jornais que usam palavras, expressões, textos, imagens e emoções apelativas, chulas, sensacionalistas, não estão dando o que uma pessoa precisa: estão reforçando o que ela quer negar, estão prendendo-a à condição de que ela quer sair, estão baixando a um nível mais inferior que o drama humano que exploram – mais inferior porque esse jeito de fazer Imprensa alimenta-se de vísceras sociais, que são depois devolvidas, por vômito, pelos vários meios de comunicação, realimentando – talvez involuntariamente, talvez inconscientemente – o processo de degradação ou de não-evolução de uma parcela da sociedade.
Também não resiste a justificativa de que programas e páginas sensacionalistas trazem leitores e ganham patrocinadores. Anunciante não é burro. Ele não quer propriamente esse tipo de programa: ele quer audiência – e, pelo menos comercialmente, esta pode vir tanto com um programa ou página que mostra um indivíduo esfolado quanto com um que apresenta brincadeiras com crianças. Dá até para concluir que alguns comunicadores não querem buscar a melhor informação; querem a maior audiência, doa a quem doer. Ética, neste caso, é só um detalhe. E, assim, amarram a burrice no rabo da estatística e a apresentam ao patrocinador. Com isso, simultaneamente assinam atestado de óbito profissional, porque, obedecendo a lei do menor esforço e estimulados por uma inapetência cultural, não são criativos e persistentes o bastante para apresentarem soluções profissional e socialmente menos indecentes do que as que já constam no cardápio pré-impresso de baixarias.
Não se está, aqui, particularizando pessoas ou produtos, meios e mensagens. Fala-se de uma causa, não de casos. Até porque, para alívio de uns, a precariedade ética, a torpeza vocabular acontece mesmo nas melhores famílias de Londres, capital da liberdade de imprensa e local onde se registra um dos maiores índices de leitura do mundo. São uma centena jornais na Inglaterra, país 33 vezes menor que o Brasil, com uma média de quase 400 exemplares de jornais por grupo de mil habitantes, aí computados os recém-nascidos. Pois é. É nessa Inglaterra das etiquetas, da fleuma, do cavalheirismo, da pontualidade, da veneração pela Casa Real e da adoração pelas coisas da realeza, é nesse lugar que explodiram grandes escândalos, que descem e satisfazem toda a escala dos instintos menores do homem. E os que deveriam dar exemplos majestáticos – príncipes e princesas, duques e duquesas e outros mais e menos nobres – também esses caem na real e na gandaia e se mostram plebeus falíveis e faláveis como qualquer outro mortal.
Jornalismo a serviço
Então, se na Inglaterra, que é a Inglaterra, é assim, por que em outros cantos deveria ser diferente? Tem lógica, mas não tem ética. Os maus exemplos só são bons exemplos para não serem seguidos. Além disso, na Inglaterra, o índice de analfabetismo e de má educação é muito reduzido, a consciência crítica é muito elevada e a militância cidadã é mais comprometida. Sociedades assim sabem o que é joio e sabem o que é trigo. Dão-se ao luxo de escolher. Em outros lugares, não: comem o que se lhes põem na boca – muitas das vezes, o pão que o diabo imprensou.
Nos países desenvolvidos, as pessoas até podem sustentar Imprensa marrom e sanguessuga. Talvez seja o caso de dizer que a curiosidade, a atração pelo inusitado, pelo bizarro, pelo picaresco e pelo pitoresco, pelo estrambótico esteja no DNA de cada indivíduo. Porém, que não se passe disso, não. Não se atreva, nessas sociedades desenvolvidas, a mexer nos direitos do cidadão, nos aspectos fundamentais da cidadania. A resposta vem logo, em cima da bucha, simultânea, forte, consciente. Em outros lugares, onde o desenvolvimento ainda não marcou ponto, a situação e a atitude são outras: à maneira dos hematófagos, pessoas deixam-se tirar o sangue, iludidas e anestesiadas pela aragem provocada pelo abanar das asas. O remédio para isso é uma Imprensa mais sanitizada, que exista para que os cidadãos se alimentem e cresçam, e não para contribuir para sua desnutrição e destruição.
Nas sociedades menos desenvolvidas, nas comunidades menos esclarecidas, costuma-se praticar um jornalismo de manutenção, que estimula o povo à permanente dependência, e não à necessária competência. É um jornalismo a serviço do status quo, onde prospera o establishment. Nessas sociedades, a evolução técnica dos veículos de comunicação não é acompanhada por evolução ética, coragem cívica e obstinação profissional dos comunicadores. Diríamos até, forçando a barra, que a máquina está superando o homem ao qual deveria servir. É a forma superando o conteúdo. É o meio evoluindo mais que a mensagem. É a substância acima do sentido. É o equipamento acima do sentimento.
O sorriso e o contracheque
Os jornais aumentam de páginas. As rádios e televisões aumentam de potência. E os comunicadores não têm aumentado nada – nem o salário. Apenas têm suas vozes, suas imagens e seus textos levados mais adiante. O aumento do número de veículos e a modernização do maquinário leva ainda à falsa impressão de que a imprensa está evoluindo. Não: também na imprensa, a evolução se dá quando evolui o ser, e não o ter.
Uma comunidade ou uma categoria não deve se iludir tanto com os avanços técnicos se a estes não corresponder um superior, infinitamente superior, crescimento ético. Caso isso não venha a acontecer, corre-se o risco de formação de uma reserva de mediocridades, absolutamente sem vez em mercados mais críticos, mais conscientes, mais exigentes, onde o personalismo é deformação psíquica e o sensacionalismo, deficiência cultural. Verdadeiramente, jogar na cara da sociedade, via meios de comunicação, a lama que nela existe não contribui para que galguemos os patamares superiores da civilização. A desculpa de que não se está inventando nada, de que se está noticiando e comentando o que acontece não é mais razoável em ambientes que pretendem evoluir. Num circo que está pegando fogo devemos atuar como bombeiros – e não como saqueadores da bilheteria, aproveitadores das desgraças alheias. Há formas e formas de se expor e de se informar sobre as misérias do quotidiano. Elas devem ser tratadas também como parâmetros para a transformação da realidade que as gerou. Essa é uma função para abaixo do couro cabeludo. Ou, como disse o jornalista Antônio Maria, ao ver suas mãos ensangüentadas, esmagadas pelos pés da ditadura: ‘Eles pensam que os jornalistas escrevem com as mãos’.
Tem gente que acha que ponderações como estas não mais vingam. Conheço um profissional que costuma dizer, até com certo cinismo, que são as notícias sensacionalistas que pagam o sorriso dos filhos dele (numa alusão ao sustento familiar propiciado pelo salário e participação no faturamento do espaço). E pobre de mim, idealista ingênuo e incorrigível, que acreditava que pelo menos as crianças, pelo menos o sorriso delas, fosse espontâneo e não-remunerado. Até as crianças pobres sorriem. A alegria delas independe das rubricas de um contracheque. É de perguntar-se: até quando, meu Deus, ao aumento de patrimônio deve corresponder a diminuição da personalidade?
Valor, honra e dignidade
Passemos às questões éticas mais específicas, tratadas em lei ou em códigos institucionais. Está certo, como diz Luka Brajnovíc, estudioso de deontologia jornalística, que ‘seria um erro pensar que os códigos solucionam o comportamento ético do profissional’. Os códigos e leis são balizadores de comportamentos e providências desejáveis em um dado momento. Entretanto, só se é ético sendo, não apenas lendo. Embora existam tratados de natação, só nos tornamos nadadores se cairmos n’água. Além do que muitos costumam não dar atenção a livros de receitas, preferindo mesmo o prato feito.
Códigos de ética parecem pecar pelo nome – códigos têm de ser decifrados; e decifrar exige estudo, reflexão, ação. Pelo número de erros que cometem, parece que muitos profissionais de comunicação não estão lendo os códigos elaborados, discutidos e aprovados pela própria categoria. Códigos que não foram impostos de dentro pra fora, mas de dentro pra dentro. No caso do jornalista, a ética aprovada recomenda que ‘a divulgação da informação, precisa e correta, é dever dos meios de comunicação’ (Art. 2º). Aqui, e sendo preciosista, deveria merecer uma redação mais adequada: ‘meios de comunicação’ não têm dever; deveres e ética são atributos de pessoa, que os exercita nos vários papéis sociais.
Considera o código que a atividade jornalística é de natureza social e finalidade pública. O código prescreve que o jornalista, pelo seu desempenho, deve agregar valor, honra e dignidade à profissão, defender os princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos, respeitar a privacidade do cidadão e prestigiar as entidades que representam a categoria. O jornalista não pode impedir o livre debate nem frustrar o direito à manifestação de opiniões diferentes, e até discordantes, da sua, ainda que no próprio veículo onde trabalhe e no espaço que ocupe. O jornalista deve evitar a divulgação de fatos mórbidos e contrários aos valores humanos e deve tratar com respeito todas – frise-se: todas – as pessoas que ele menciona nas informações ou comentários que ele divulga. Além disso, exigente, o Código de Ética prescreve que o jornalista deve preservar a língua portuguesa e a cultura brasileira.
Dever e obrigação
Quem descumprir essas disposições – repita-se: feitas e sancionadas pelos próprios jornalistas –, fica, entre outras penas (incluindo-se as de natureza cível e criminal), desligado da entidade que representa a categoria. Se não for associado ou sindicalizado, fica impedido definitivamente de sê-lo.
Os deveres éticos do radialista são semelhantes aos do jornalista, pois semelhantes são os atributos de informar. O que difere é o meio, a forma. A função, a missão, não. Para se ter uma idéia, o código de ética do radialista estabelece que é compulsório, obrigatório, o seu cumprimento, e entre os deveres prescritos estão o de não aceitar trabalho a qualquer preço; não ser desleal ou preconceituoso; não ser covarde (é essa mesma a palavra) no exercício da sua função; não ser submisso a forças que distorçam a verdade; não usar o poder de divulgação para atender interesses escusos e contrários aos da comunidade. O radialista deve ser imparcial.
Jornalistas e radialistas têm o dever profissional, a honra pessoal, a obrigação moral de não cometer calúnia, injúria ou difamação – especialmente quando desempenham suas atividades em lugares onde os níveis de informação e de formação, de consciência cívica e de conhecimento legal são mínimos. O profissional de comunicação está nessas comunidades para servi-las, não para servir-se delas. Portanto, ao noticiar ou comentar fatos ligados a crime, nada de rotular os envolvidos com palavras que implicam ilícito penal. Enquanto a Justiça não julgar em definitivo, um envolvido em crime é no máximo um acusado de. Não deve ser chamado de ladrão, delinqüente, incendiário, chantagista, espião, traidor, adúltero, degenerado, toxicômano, ébrio, espancador de mulheres. Liberdade de Imprensa não é licença para imprensar. Se o jornalista e o radialista não prenderem a língua… podem ser presos por causa dela. Há tanto crime em um furto quanto em rotular o acusado de ladrão.
Como um carimbo
Tenho certeza de que profissionais conscientes gostariam de que a comunidade, o seu público, o ajudasse a serem melhores em sua profissão. Por isso, sugiro a implantação de um Conselho Comunitário de Comunicação Social, formado por representantes das várias organizações: ordem dos advogados, associação e sindicato de comunicadores, associações de moradores, sindicatos de trabalhadores, entidades empresariais, movimentos religiosos… Um Conselho que se reunisse periodicamente para que seus integrantes avaliassem, como pretensos representantes da sociedade e como pretendidos destinatários dos produtos, processos e serviços de comunicação social, se estão gostando do que lêem, vêem e ouvem. A partir daí, ações lícitas, transparentes, poderiam ser desencadeadas junto aos comunicadores, às empresas de comunicação, aos patrocinadores/anunciantes e junto a outras pessoas e entidades, além de outras civilizadas, lícitas e necessárias formas de pressão para demonstrar insatisfação ou repúdio ante o que é veiculado.
Se os comunicadores estimularem a formação desse Conselho, creiam que não estarão fazendo só por eles. Estarão fazendo pela empresa que os abriga, pelos anunciantes que os patrocinam, pelos ouvintes, leitores e telespectadores que os prestigiam e os legitimam, pela comunidade que os quer ali. Desta forma, tenho certeza, tornar-se-ão cada vez mais respeitados e serão melhores profissionais – e quanto melhores profissionais, melhores cidadãos. Falar e escrever, bem sei, não é tão fácil. Exige, até, músculos e pode enfraquecer o corpo. Mas falar e escrever irresponsavelmente, quando não ilegalmente, é pior: enfraquece o caráter e a alma – e um caráter fraco, o homem julga; a alma fraca, o diabo leva.
Não só é fácil falar de ética. Também é fácil praticá-la. Depende de cada um. Advirta-se que não existe ética de profissão, existe ética no profissional. Não existe ética no trabalho, existe no trabalhador. Porque ética é um bem individual, de pessoa, que a aplica, como um carimbo, no decorrer do exercício de seus papéis sociais. Quanto mais eu divido a ética, pela variedade de relacionamentos no quotidiano, mais ela se multiplica em mim e em minhas experiências de vida e ofício. Ora, se admitimos que ética é algo bom, que honestidade funciona, que ser bom faz bem, que quem faz bem é bom, se isso não é proibido fazer e ainda traz bons resultados, então, por que não fazer?
Demasias e incompletudes
Sabe-se dos problemas de ordem material que jornais, rádios e televisões enfrentam. Mas os donos desses veículos já admitem que, quando criam, por exemplo, um jornal, não estão criando só uma empresa, com finalidade comercial; acima de tudo, dão origem a uma instituição, com responsabilidade social. Dinheiro é importante, mas não é suficiente. Falte-se moral, honestidade, ética e, um dia, toda a casa cairá. Veículos de comunicação enfrentam altos custos, mas nenhum deles será maior que o custo ético que um dia vier a onerar os negócios.
Profissionais e proprietários às vezes falam que idealismo não enche estômago. Com todo o respeito à figuração do provérbio, sou da opinião de que fazer jornalismo é para jornalistas, não para glutões. Tudo na vida envolve ou requer um pouco de desprendimento, abnegação, sacrifício – sem masoquismo, evidentemente. A temeridade maior não deve estar na barriga vazia, mas na cabeça vazia.
A ética na imprensa funciona como um limite que faz crescer. Ética não é conversa fiada. Nem matéria paga.
Com certeza, neste texto sobre ética na imprensa, o autor pecou por excesso, pecou por omissão. Isso é reflexo, quem sabe, das demasias e incompletudes próprias de quem é uma criatura, e não o Criador. De quem não é a Divindade, apenas seu devedor. Enfim, de quem não é o Ser Perfeito, mas, tão-só, um ser pecador.
De quem se dispuser, aguardam-se comentários.
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Jornalista, Imperatriz, MA