A denúncia do Ministério Público de São Paulo contra o bispo Macedo e sua troupe não surpreende quem tem um mínimo de desconfiômetro. Existe algo de podre no reino da Dinamarca, e não são os aviões de carreira. Os argumentos de cooptação dos fiéis por diversas igrejas, principalmente as evangélicas, são uma espécie sutil de chantagem emocional que se aproveita da fragilidade da presa e de sua predisposição às condições impostas, inclusive as mais absurdas, para garantir acesso ao reino dos céus ou pagar a dívida contraída no botequim da esquina.
O mundo é governado pelos espertalhões. O resto é mané. A maioria dos espertalhões age na clandestinidade, e quase sempre não são apanhados. Outros espertalhões, pela própria atividade que desenvolvem (é o caso de algumas igrejas que têm na publicidade sua maior força) terminam mais expostos do que frangos nas câmaras frigoríficas dos supermercados. Ligue a tevê, o rádio, a internet, e lá estão eles, batendo Bíblia, brandindo ataques ao demônio (mas correndo a sacolinha, que ninguém é de ferro). E haja mané, um tipo de bicho com uma infinita capacidade de reprodução, pra juntar dinheiro e entregar nas mãos dos espertalhões, pensando que estão entregando nas mãos de Deus.
Outro dia liguei a televisão no início da manhã, fugindo aos meus hábitos (acredito sinceramente que as manhãs pertencem ao rádio, mas uma vez ou outra cometo um deslize, pecador que sou). E me estarreci: das sete emissoras que podia sintonizar no sinal aberto, seis transmitiam conteúdos religiosos. Neles, uns pregadores mais e outros menos histriônicos rasgavam o verbo (e o verbo bem que tentava, mas não era Deus), enquanto alguns eram decididamente histéricos, assustadores. Vou fazer uma confissão: tenho medo dessa gente, e sabe por que? Porque descaradamente servem-se da boa fé das pessoas, principalmente as mais humildes, e descaramento sempre me assustou; ou, o que é ainda mais perigoso: acreditam no que dizem. As pessoas mais perigosas do mundo são as que acreditam firmemente no que dizem. Porque são capazes de tudo.
Sacolinha de ouro
Existe algo de podre no reino da Dinamarca, comentei com meu botão esquerdo, e olhando para o céu vi que não eram os aviões de carreira. E o que há de podre é uma complacência inexplicável dos governos e dos especialistas em mídia com os espertalhões que se servem da massa bovina dos manés para engordar a sacolinha. E olha que isso vem acontecendo há muito tempo, debaixo de nossos narizes, pelas telinhas da tv, em grande número das emissoras de rádio, no templo ali da esquina. E simplesmente não fazemos nada. Nem percebemos que a denúncia do Ministério Público é uma gota d´água no oceano de espertalhões que se servem da boa fé dos manés, principalmente dos mais humildes.
No que diz respeito ao nosso quintal, temo pela apropriação que essas igrejas (e aqui falo de todas, sem exceção alguma) fazem do discurso da mídia. Como se fossem Deus, tornaram-se onipresentes – estão em toda parte, onde se liga a tv, onde se liga o rádio, para onde se volta a vista, em qualquer biboca onde exista gente. De Deus roubaram outra característica: são oniscientes – dominam a verdade absoluta, sabem de tudo e detêm o monopólio da informação. Com uma vantagem em relação a Deus, que aceita o livre arbítrio: não admitem voz alguma em sentido contrário. Têm a primeira e a última palavra – alfa e o ômega. E ai de quem ousar se manifestar em forma de dúvida ou contestação.
Como naquele texto famoso de Bertold Brecht, primeiro nos roubaram uma flor e não fizemos nada. Depois roubaram o jardim inteiro, e aí já não podíamos fazer mais nada. Enquanto seus arautos descobriram a importância dos meios de comunicação como manipuladores de consciências, na montagem do mais bem azeitado exército de soldados que entregam o último dos seus vinténs ganho com o suor mais suado, ficamos acomodados. E assim continuamos, não por medo do inferno, espero. Mas por preguiça ou alienação mesmo. Porque a nenhum de nós, que lidamos com a comunicação e conhecemos seus mecanismos, é lícito desconhecer o ciclópico poder entregue numa sacolinha de ouro a quem pode fazer uso dele para os piores fins em nome das mais nobres finalidades.
A propósito: quando me refiro aos manés, é favor incluir meu nome e também o teu entre eles. Porque, se não somos espertalhões nessa história, então somos o quê?
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Jornalista, pesquisador, professor da UnB