Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Os maus pedaços da BBC

A British Broadcasting Corporation (BBC), conglomerado de mídia pública mais respeitado do mundo, atravessa uma severa crise que abala a sua credibilidade. A corporação é acusada de não apurar com rigor centenas de denúncias de pedofilia contra o ex-apresentador Jimmy Savile, morto em 2011. Savile foi uma das grandes estrelas da emissora nos anos 1960 e 70. No ano passado, o conceituado programa da BBC Newsnight chegou a produzir uma edição sobre os escândalos, que acabou não sendo exibida porque os editores avaliaram que ainda não havia provas suficientes contra Savile. Uma homenagem ao ex-apresentador foi transmitida no lugar do programa e uma emissora concorrente, a ITV, acabou noticiando as acusações pouco depois.

A polícia metropolitana de Londres investigou as denúncias contra Savile e, no final de outubro, o Parlamento britânico ouviu o então diretor da emissora, George Entwistle, sobre o assunto. Em um depoimento de duas horas, Entwistle, que ficou apenas 55 dias no cargo, admitiu que o escândalo abalará a empresa: “Não há dúvidas de que o que Jimmy Savile fez, e a maneira como a BBC se comportou naqueles anos – a cultura e as práticas da BBC parecem ter permitido que Jimmy Savile tenha feito o que fez –, vão provocar perguntas sobre nossa confiança e reputação”.

A imagem da emissora foi posta em questão novamente no início do mês. A BBC exibiu uma reportagem vinculando um político britânico, ex-tesoureiro de Margaret Thatcher, a um caso de abuso sexual. A matéria não revelou o nome do político, mas em questão de minutos a identidade do acusado foi parar nas redes sociais. O acusado era inocente. A falha na apuração levou à troca de comando na emissora. Entwistle será substituído a partir de março por Tony Hall, que atualmente dirige o Royal Opera House. O Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (27/11) pela TV Brasil debateu as consequências dessa sucessão de escândalos para a credibilidade da BBC.

Para discutir o assunto, Alberto Dines recebeu três jornalistas no estúdio. Em São Paulo, participaram dois ex-funcionários da BBC: Américo Martins e Rogério Simões. Américo Martins trabalhou na emissora por 13 anos. Foi diretor da BBC Brasil e diretor-executivo para o Continente Americano. Mestre em Jornalismo e em Ciências Políticas, atualmente é superintendente de Jornalismo da Rede TV!. Rogério Simões é editor-executivo da revista Época. Foi diretor da BBC Brasil, baseado em Londres, onde viveu por dez anos. É mestre em Segurança Internacional e Governança Global pelo Birkbeck College, da Universidade de Londres. No Rio de Janeiro, o programa contou com a presença de Mário Magalhães, que foi ombudsman, repórter especial e colunista da Folha de S.Paulo, autor de Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo, lançado recentemente.

Poder e contrapoder

Antes do debate no estúdio, em editorial Dines ressaltou que qualquer segmento da mídia comete infrações. “Isso explica a necessidade de exercermos nosso senso crítico em qualquer situação e oportunidade. Dois clamorosos erros cometidos pela BBC, uma empresa de comunicação modelar, única no mundo e fundada há quase um século, comprovam que numa sociedade democrática qualquer poder deve produzir um contrapoder de modo a neutralizar todos os abusos e disfunções”, afirmou Dines [ver íntegra abaixo].

A reportagem exibida antes do debate ao vivo ouviu a opinião do jornalista Eugênio Bucci, professor da Universidade de São Paulo (USP) e da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). Para Bucci, os mecanismos adotados pela BBC para prestar contas dos seus procedimentos, através dos quais a sociedade verifica o comportamento da emissora, precisam ser mais transparentes. “Vão ter que ser mais rápidos, mais eficientes, mais acessíveis, menos mediados. Isso seria o bom resultado que esse escândalo poderia propiciar”, disse o jornalista.

Bucci acredita que o episódio também ensinará que o Jornalismo não existe apenas para “jogar” a informação no espaço público: “Ele existe para fazer a mediação de debates públicos. E para mediar debates públicos é indispensável um alto grau de confiança da sociedade nos veículos de informação. E esse grau de confiança só existe quando os procedimentos, os métodos, o modo de agir são acessíveis para todos e podem ser verificados por todos”.

Reação lenta?

A reportagem também entrevistou Marco Schneider, professor de Ética Jornalística da Universidade Federal Fluminense (UFF). O professor avalia que, quando o fato tornou-se notório, a BBC não tinha como ocultar as denúncias: “Eu não sei se outras empresas que tivessem passado pelo mesmo problema teriam agido com tanta agilidade para cortar na própria carne. A reação que a empresa teve nessa sequência de problemas, a reação imediata, de certa maneira irá contribuir para minimizar o estrago”. Para Schneider, não houve um dilema ético e sim um erro de avaliação da emissora.

De Londres, o correspondente Silio Boccanera disse que a BBC tem uma grande capacidade de autocrítica. “A BBC já passou por outros apertos, aprende com os erros que comete, lava roupa suja publicamente”, disse o jornalista. Para ele, a emissora já provou, ao longo dos últimos 90 anos, que pratica um jornalismo de alto nível. A recente sequência de problemas, na avaliação de Boccanera, serviu de subsídio para a oposição formada por grupos conservadores, que “salivam” para abalar a credibilidade da BBC. O News Corp., conglomerado de mídia de Rupert Murdoch que há anos faz campanha para a privatização da BBC, também torce contra a emissora pública.

De acordo com Boccanera, George Entwistle perdeu o cargo porque não conseguiu dar respostas satisfatórias e pareceu desinformado em uma rigorosa entrevista realizada no canal de rádio BBC4: “O jornalista apertou o seu próprio diretor nessa entrevista, cobrou respostas de forma agressiva. Exigiu e expôs publicamente a má informação do executivo supremo da organização sobre o que tinha ocorrido dentro dela. Difícil imaginar demonstração mais clara de rigor e independência. Vai sobreviver a BBC? Com um histórico desse vai, sim. Para a sorte de quem a assiste”.

Discussão sem embargos

No debate ao vivo, Américo Martins contou que estava em Londres havia poucos dias e acompanhou a crise na emissora. O jornalista disse que houve uma pressão política muito grande para que George Entwistle pedisse demissão. Como a BBC é uma instituição pública, a sociedade vasculha tudo o que ocorre com a empresa e, por isso, a exposição das falhas da emissora foi tão estrondosa. “A BBC não tinha o direito de errar desta forma mas, pelo menos, foi uma grande discussão pública a respeito disso. E [a emissora] tomou algumas decisões graves e severas, com o afastamento de alguns jornalistas. Eu tenho certeza de que eles vão rever internamente alguns procedimentos para manter a credibilidade da empresa”, disse Martins.

Américo Martins comentou que tem receio de que a BBC se intimide diante da repercussão desses dois escândalos e instale um sistema de “controle e burocratismo” mais acentuado. O jornalista lembrou o caso Kelly, quando o governo britânico investigou as circunstâncias da morte do especialista em armas iraquianas do ministério da Defesa, David Kelly. Baseado em uma entrevista com o cientista, mas sem revelar a fonte, um repórter da BBC sugeriu em um programa de rádio que o governo trabalhista havia manipulado dados para justificar a invasão do Iraque. Naquela época, a BBC trocou dois importantes diretores e promoveu uma profunda investigação interna.

“Logo depois, a BBC teve que reforçar tanto o sistema de controle que eu acho que em vários momentos ela se acanhou. Passou por um momento em que todos nós tínhamos na cabeça que era preciso controlar tudo e ter 500% de certeza do que estamos falando antes de colocar no ar. Eu acho que a BBC andou uns passos atrás naquele momento. Depois, obviamente, passa um período e tudo se acomoda. Existe um sério risco de isso acontecer novamente”, alertou Martins.

Criticas em todas as esferas

Dines perguntou a Rogério Simões se houve complacência ou corporativismo da BBC com os abusos sexuais atribuídos a Savile. O jornalista ponderou que a investigação ainda está em curso e não se sabe ao certo que crimes o apresentador teria cometido. Simões contou que a imprensa britânica assegurou que a apuração promovida pelo programa Newsnight teria sido deixada de lado por questões jornalísticas. “Quando a ITV trouxe meses depois uma reportagem semelhante, mostrando que aqueles casos eram realmente graves e que havia muita informação sobre eles, isso colocou a BBC em uma situação muito difícil”, avaliou Simões.

O jornalista sublinhou que nenhum funcionário da BBC está imune a críticas, mesmo os que ocupam cargos mais altos na hierarquia. “Pelo menos em tese, não haveria por que um ex-apresentador da BBC ter a sua credibilidade protegida pelo jornalismo da BBC. O jornalismo da BBC está lá para investigar quem quer que seja e deveria ter investigado esses casos”, disse Simões. A postura da corporação sempre foi questionadora dos governos, instituições privadas, até de seus próprios dirigentes.

Mário Magalhães lembrou que os conservadores britânicos têm tentado aproximar a crise da BBC com os escândalos promovidos pelos tabloides do grupo de Rupert Murdoch, acusados de grampear personalidades se pagar propina para funcionários públicos, incluindo policiais. “Aqui [no Brasil], a gente não tem notícia de eventos dessa natureza pelo menos com tanta clareza como lá. Mas quantas reportagens nós já não aclamamos no Brasil, premiamos com prêmios dos mais prestigiados, nas quais foram usados grampos feitos por organizações criminosas?”, criticou Magalhães.

Para o ex-ombudsman da Folha, governo algum gosta de jornalismo independente. “A BBC não é só um patrimônio do Reino Unido. Os padrões jornalísticos estabelecidos pela emissora são uma referência mundial, os padrões clássicos de qualidade do jornalismo. Ela está, evidentemente, sob fogo por ser uma empresa pública. Só em uma empresa pública seria possível uma lavagem de roupa suja à luz do dia como está acontecendo. Se fosse uma empresa privada, isto seria impossível”, ressaltou Mário Magalhães.

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A crise na BBC

Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 667, exibido em 27/11/2012

Quando falamos em abusos cometidos pela mídia estamos incluindo toda a mídia. Reclamamos contra o sensacionalismo ou contra o facciosismo e não estamos pensando apenas na mídia eletrônica, digital, impressa, comercial ou estatal. Qualquer segmento dos meios de comunicação comete infrações, não existem formatos perfeitos.

Isso explica a necessidade de exercermos nosso senso crítico em qualquer situação e oportunidade. E justifica a existência de entidades independentes, aptas ao exercício da crítica, qualquer que seja o formato do veículo jornalístico e o modelo acionário da empresa que o edita.

Dois clamorosos erros cometidos pela BBC, uma empresa de comunicação modelar, única no mundo e fundada há quase um século, comprovam que numa sociedade democrática, qualquer poder deve produzir um contrapoder de modo a neutralizar todos os abusos e disfunções.

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A mídia na semana 

>> Com a autoridade de vitorioso nas duas últimas eleições presidenciais, o marqueteiro João Santana declarou na segunda-feira (26/11) à Folha que o julgamento do mensalão no STF foi um reality show e que seus ministros não estão preparados para a superexposição midiática. O mago do marketing esqueceu que é jornalista e, portanto, um comunicador. Investir contra as transmissões dos julgamentos da nossa Suprema Corte equivale a rasgar os seus compromissos com a transparência, a busca da verdade e a livre circulação de informações. Quem capta as sessões do Supremo e disponibiliza o seu sinal é a TV Justiça, uma TV do Estado brasileiro, uma instituição republicana. O marqueteiro não sabe ou esquece que a TV Justiça foi criada para ajudar a democracia e acabar com as injustiças. Foi uma decisão da mais alta instância do Judiciário. Quando o repórter João Santana ajudou a derrubar o presidente Collor acreditava piamente na transparência. Mudou. E mudou para pior.

>> O assassinato do coronel do Exército Molina Dias em Porto Alegre permitiu que viessem à tona valiosos documentos sobre a repressão aos opositores da ditadura militar. Entre os papéis que conservava em seu poder está a comprovação de que o deputado Rubens Paiva, desaparecido desde janeiro de 1971, foi primeiro levado ao DOI-Codi do Rio de Janeiro, então comandado por ele. O jornal gaúcho Zero Hora teve acesso aos documentos e assim desfez um mistério que já dura 41 anos. A imprensa calada pela ditadura pode agora contribuir decisivamente para desenterrar as provas da violência nos anos de chumbo.

>> O relatório da CPI do Cachoeira conseguiu desagradar a todas as partes, está sendo bombardeado por todos os lados e, evidentemente, pela imprensa. Não apenas porque esqueceu os negócios do contraventor com a empreiteira Delta, mas porque, além de citar 12 jornalistas, pediu o indiciamento de cinco por formação de quadrilha, um deles o diretor da sucursal de Veja em Brasília, Policarpo Júnior. Para o deputado Odair Cunha, relator da CPI, três jornalistas desenvolviam o seu trabalho jornalístico para favorecer os interesses e engrossar o poder de Cachoeira. Uma comissão de inquérito do Legislativo não tem competência para julgar procedimentos jornalísticos, quem deve fazê-lo são as empresas para as quais trabalham estes profissionais ou as entidades de observação e autorregulação da imprensa. Quando políticos ganham o direito de castigar jornalistas, adeus ao jornalismo livre.

>> A mídia internacional e inclusive a brasileira esqueceu que na quinta, 29 de novembro, completam-se 65 anos da partilha da Palestina em dois Estados. Um deles, o Estado de Israel, foi criado. Já o Estado árabe da Palestina morreu antes de nascer, graças à intervenção de países vizinhos que não admitiam a partilha do território. A Autoridade Palestina presidida por Mahmud Abbas pretende ser admitida como observadora da ONU implementando a decisão de 1947. A mídia, distraída com os radicais do Hamas e do governo de Israel, não lhe dá a menor atenção. Excelente oportunidade para o Itamaraty completar a gestão do brasileiro Osvaldo Aranha, que presidiu a Assembleia da ONU dando força à opção de dois Estados no mesmo território, a única que até hoje não foi tentada.