Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Os novos terroristas da mídia

Poucas vezes uma reportagem foi tão distorcida quanto a do Jornal Nacional de quarta-feira (9/4) a respeito do MST. Nos dois minutos e vinte e quatro segundos da matéria busca-se a criminalização dos camponeses; para tanto, imagens e palavras são cuidadosamente articuladas para transmitir ao telespectador a idéia de que os militantes do MST é quem são os responsáveis por todo o medo que ronda os paraenses.


Logo na abertura da matéria, o fundo escurecido por trás do apresentador exibe a sombra de três camponeses portando ferramentas de trabalho em posições ameaçadoras, como a destruir a cerca cuidadosamente iluminada pelo departamento de arte da emissora. Quando os militantes aparecem nas imagens, estão montando o acampamento e utilizando folhas de palmeiras – naturalmente já arrancadas das árvores. Quando a matéria corta para ouvir a opinião de um empresário local, ele tem ao fundo exatamente uma folha de palmeira, só que firme no solo – e vistosa, viva. O representante da Vale do Rio Doce é o que tem mais tempo para se manifestar, tanto tempo que até gagueja – e balbucia: ‘Esses movimentos… estão [nos] impedindo de trabalhar’.


Em nenhum momento os representantes do MST são ouvidos, o que contraria, inclusive, as próprias regras do jornalismo da Globo. Mas quando os interesses comerciais de empresas amigas estão em jogo, no caso a Vale, tudo indica que essas regras são postas de lado.


Versão única 


Outro dado marcante desta reportagem veiculada pelo Jornal Nacional é a descontextualização dos fatos. O telespectador é apenas informado que o MST ‘ameaça invadir a Estrada de Ferro Carajás, da companhia Vale’, mas não se explica que esta ação direta tem uma origem: a privatização fraudulenta da Vale do Rio Doce. A companhia foi leiloada, em 1997, por 3,3 bilhões de reais. Valor semelhante ao lucro líquido da empresa obtido no segundo trimestre de 2005 (3,5 bilhões de reais), numa clara demonstração do prejuízo causado ao patrimônio do povo brasileiro. Desde então, cidadãos e cidadãs vêm promovendo manifestações políticas e ações judiciais que têm por objetivo chamar a atenção da sociedade brasileira e sensibilizar as autoridades competentes para anular o processo licitatório.


Se há uma diferença brutal entre discordar de uma determinada opinião e omiti-la, este caso torna-se ainda mais grave porque não se trata de uma opinião, e sim de um fato político: a privatização da Vale está sendo questionada na Justiça – e com grandes chances de ser revertida. Ao sonegar esta informação, a Globo comete um crime e deveria ser punida pelos órgãos competentes.


Com a mesmíssima parcialidade age o jornal O Globo. A reportagem publicada na mesma quarta (9) sobre o MST não deixa dúvidas quanto ao lado assumido pela publicação. A chamada na primeira página diz tudo: ‘MST desafia a Justiça e volta a ameaçar a Vale’; o pequeno texto, logo abaixo, aprofunda a toada:




‘O MST ameaça descumprir ordem judicial e invadir novamente a ferrovia de Carajás, da Vale, no Pará. Moradores da região estão atemorizados, com a cidade cercada por mais de mil militantes do MST, a quem acusam de terrorismo’.


A reportagem principal, à página 9, é acompanhada de outra de igual tamanho. Ambas ouvem apenas a versão da mineradora privatizada pelo governo tucano de FHC. Imediatamente abaixo, como a reforçar a visão policialesca, uma fotografia de um homem morto sobre o título: ‘Em Porto Alegre, um flagrante de homicídio’. Nenhum dos dois veículos (O Globo e JN) registrou o apoio recebido pelo MST por artistas, intelectuais e lideranças partidárias.


Lugar na história


Esta falsa preocupação do Globo com a defesa do povo brasileiro não é de agora. O mesmo jornal que hoje sugere que os militantes do MST são terroristas por atemorizar os paraenses procedeu da mesma forma há 44 anos, quando um golpe de Estado derrubou o presidente constitucional João Goulart. Em texto editorial do dia 2 de abril de 1964, o Globo assinalou:




‘Vive a Nação dias gloriosos. Porque souberam unir-se todos os patriotas (…) para salvar o que é essencial: a democracia, a lei e a ordem. Graças à decisão e ao heroísmo das Forças Armadas (…), o Brasil livrou-se do Governo irresponsável, que insistia em arrastá-lo para rumos contrários à sua vocação e tradições. (…) Poderemos, desde hoje, encarar o futuro confiantemente (…) Salvos da comunização que celeremente se preparava, os brasileiros devem agradecer aos bravos militares, que os protegeram de seus inimigos. (…) Aliaram-se os mais ilustres líderes políticos, os mais respeitados Governadores, com o mesmo intuito redentor que animou as Forças Armadas. Era a sorte da democracia no Brasil que estava em jogo.(…) A esses líderes civis devemos, igualmente, externar a gratidão de nosso povo.(…) Se os banidos, para intrigarem os brasileiros com seus líderes e com os chefes militares, afirmarem o contrário, estarão mentindo, estarão, como sempre, procurando engodar as massas trabalhadoras, que não lhes devem dar ouvidos (…).’


Assim como para o Globo os inimigos do passado eram aqueles que se insurgiam contra a ditadura que seqüestrou, torturou e matou milhares de brasileiros, hoje os terroristas são aqueles que lutam contra as multinacionais que roubam o patrimônio público, danificam o meio ambiente e produzem graves problemas sociais. É exatamente por isso que ao interromper o fluxo de exportação de uma dessas empresas os militantes do MST acertam em cheio no sistema nervoso do capitalismo. Dotados apenas de enxadas e coragem, os sem-terra enfrentam jagunços armados, policiais e poderosos grupos de comunicação – esse coquetel que tem como objetivo massacrar o povo organizado. Assim é que os militantes do MST ensinam ao povo brasileiro: não é uma luta justa, mas é uma luta que pode ser vencida.


Por outro lado, o jornalismo das Organizações Globo mais uma vez revelou seu caráter covarde e submisso. Aliou-se aos poderosos e rasgou o juramento profissional da categoria, sobretudo no seguinte trecho:




‘A Comunicação é uma missão social. Por isto, juro respeitar o público, combatendo todas as formas de preconceito e discriminação, valorizando os seres humanos em sua singularidade e na luta por sua dignidade.’


Mas não há de ser nada. A História vai se ocupar de reservar a cada qual seu devido lugar.

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Editor do jornal Fazendo Media