Da semana que passou, causa espécie que a imprensa não tenha visto a persona, a ridícula persona que veste os membros mais famosos da Comissão Parlamentar de Inquérito no Congresso. A chamada mídia, em sua quase totalidade, parece estar mais concentrada nas palavras, nas palavras das denúncias, esquecendo a denúncia das palavras, o modo e significado como elas se denunciam. O poeta e jornalista Nei Duclós já observara em ‘A quadrilha das palavras‘ que ‘a quadrilha é composta, primeiro, pelas falas da direita, que está tirando o máximo proveito da situação que ela mesma criou em séculos de poder… E há ainda o falso moralismo, os pastores auto-imputados como paradigmas da virtude’.
Na pressa de todos os dias, na busca do furo, do novíssimo ainda não escrito, que no caso quer dizer, denúncia, bomba, bomba, como um novo Ibrahim Sued, repórteres e analistas não prestam atenção na denúncia das palavras de todos os dias. A urgência desculpa a miopia. Mas que dizer das pessoas, ou melhor, das personas com que se vestem as excelências, das personagens acintosa e espalhafatosamente vestidas por deputados e senadores, será que nem mesmo isto vê a pressa da nobre imprensa?
Os personagens menores
Os personagens maiores do drama que vive hoje o Brasil ainda são obscuros. Eles com absoluta certeza aparecerão quando estivermos mais distantes da hora presente. Mas os personagens pequenos já surgem, em papéis e fantasias cômicas, com ares sérios, graves, e altura de trágico. Que não resistem, no entanto, a um olhar um pouquito só percuciente.
Nem precisamos falar do péssimo cantor de óperas, de olho inchado por Vingança de Lupicínio Rodrigues, cujos discursos confundem-se com os mais moralistas dos membros da CPI. Esse nobre, corrupto confesso, não é membro da CPI. Apenas sugere direções para o que deve ser investigado. Referimo-nos mais precisamente a uma senhora que está presente em todas as chamadas ao vivo da TV, na imprensa falada e escrita, com insinuações e acusações, que se igualam nas suas declarações muito além da rima. Não é possível que não a vejam. Ela sempre aparece, ora aos gritos, ora na serenidade possível da estridência, mas sempre, de uma forma ou de outra, de dedo em riste ao se referir ao governo Lula. É uma jóia rara da mais rara e raríssima virtude. Sempre de calças jeans, de blusa de malha branca, o próprio modelo da parlamentar do povo. Pobre e simples. Não sorriam, é verdade. A descrição que se faz da parlamentar é verdade.
Quem a conhece, melhor, quem a vê, sabe que não mentimos. Um colunista, de passagem, já observou que a senadora Heloísa Helena costuma ser um dos pontos altos de qualquer sessão, em altura de decibéis. Ela madruga na Câmara, para ser a primeira a se inscrever para perguntar a seu modo, aos gritos, ecoados pelas imagens da televisão, para todo o Brasil. Só não vê isto, ou não ouve, quem não quer. Se os defensores do governo Lula agissem com o mesmo nível de insinuação e maldade com que tão, esta é a palavra, histericamente são acusados, diriam que a nobre parlamentar ficou mais radical desde o dia em que foi acusada pelo senador ACM de trair o PT, ao votar contra a cassação de um senador corrupto. Diriam que, para o bem e para o mal, o senador ACM era um homem bem informado. Mas não, ouvem em paz, mui compreensivos, declarações da senadora como: ‘Eu bato na mesa, desafio ele, o governo, o inferno a quatro. Eu não ponho a carapuça’. Primor de ato falho.
A maior dignidade
A deputada Denise Frossard é um caso à parte. Exige uma vista um pouco mais acurada. Ao vê-la falar na CPI sempre recebemos dessa fala um incômodo, uma espécie de estranheza, que de imediato, na hora, não atinamos a razão. A primeira coisa estranha é que ela, enquanto arroga-se o papel de tertius, um terceiro que em meio aos extremos busca a decência e a moral, veste-se do tertius que aumenta e reforça as vozes à direita. É a própria voz de contralto no coro dos amnésicos do governo passado. Enquanto não entendemos este quadro, recebemos a segunda estranheza. A deputada Denise, nas primeiras palavras da sua fala, já vem num mar e assomo de indignação, de matar de inveja, ou melhor, de matar de vergonha Fernanda Montenegro: ‘Estou perplexa! A perplexidade me toma…’. Assim mesmo, incendiada, sem faísca ou fósforos. Como uma corredora de 100 metros rasos que explodisse no primeiro salto. Ora.
É da natureza humana, tão bem imitada pelos bons atores, que o sentimento, a emoção, a fala, o crescendo, tem um processo. Nem mesmo as feras selvagens atacam de pronto. Elas recuam a cabeça, se agacham, antes do salto. É até da mecânica da fisiologia. Somente mesmo os loucos pulam de armas engatilhadas ao receberem um bom-dia. Ou os personagens de filmes pornográficos, de baixa realidade, que nem precisam do cumprimento para o início da ação. Na vida real é um pouquinho mais diferente. Mas a deputada, não, já vem ancestralmente indignada, antes até que houvesse nascido.
Com a experiência de juíza federal, o que ela sempre declara a propósito de tudo e a propósito de nada, sempre a mostrar que pôs na cadeia perigosíssimos bandidos, como a lembrar aos telespectadores e público, sempre, ‘eu sou absolutamente íntegra’, ela assim se dirige ao objeto do seu incêndio: ‘O senhor tem consciência de que os crimes que eu lhe imputei aqui o senhor estará respondendo lá fora? Que é integrante de uma quadrilha que trafica influência, que praticava crimes de corrupção e que lavava dinheiro?’. O público de big brother aplaude a performance.
Ora, uma vista um pouquinho mais acurada daria a essa demonstração pública de virtudes e ímpetos declarados de justiça o benefício da dúvida. ‘Em 1993, Denise Frossard ganhou notoriedade nacional por fazer o que deveria ser feito. No caso do Rio de Janeiro, até para isto era preciso ter fibra, era preciso audácia: colocou 14 criminosos poderosos e de bom trânsito no meio político, econômico e social, na cadeia. Sua coragem lhe valeu inimigos e ameaças, às vezes à própria vida’, diz ela de si mesma, na página dedicada a si como um monumento.
Protérvia de Cícero
E aqui chegamos a um dos pontos culminantes da CPI dos Correios, que por toda a imprensa passou como uma coisa apenas registrável. Como um excêntrico de passagem. Na semana finda, o deputado Osmar Serraglio, relator da CPI, interrogou o ex-tesoureiro do PT com palavras de …. Marco Túlio Cícero!!! Sim, com palavras de um dos textos das Catilinárias. Aos fatos, aos fatos, que são mais eloqüentes:
‘Até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência? Por quanto tempo zombará de nós essa tua conduta? A que extremos se há de precipitar a tua audácia sem freios? Nem a guarda do Palatino, nem a ronda noturna da cidade, nem os temores do povo, nem a afluência de todos os homens de bem, nem este local tão bem protegido para a reunião do Senado, nem o olhar e o aspecto desses senadores, nada disso conseguiu perturbar-te? Não sentes que teus planos estão à vista de todos? Não vês que a tua conspiração todos aqui a conhecem?’
Essas foram as palavras de Osmar Serraglio a Delúbio Soares, aqui nos papéis de Cícero e Catilina, nessa ordem. Por toda imprensa passou um ar de surpresa e incompreensão. Ainda que se repetisse, nos poucos registros, o despacho da Agência Senado, que lembrava o Catilina que fora acusado por Cícero de conspirar para derrubar o Senado, e que Serraglio, o novo Cícero, assim equiparou o comportamento de Delúbio, o novo Catilina, pois estaria, o falso vivo, a confundir os membros da CPI dos Correios, nessa mistura e confusão. Apenas comentaram, os mais ousados, que o deputado Osmar Serraglio, para tal citação, seria um homem erudito.
No entanto… tão diferentes as duas situações, tão absurda a invocação de Cícero, e ninguém viu, ou pesquisou, ou procurou ver, porque afinal o questionamento do nobre deputado não constituía um furo, uma denúncia. Apenas caracterizava, diziam, o alto nível do perguntador, e o mais baixo e degradante gênero de um corrupto. E vejam, não precisavam de muita pesquisa. A citação de Cícero está na introdução da ‘Primeira Catilinária’, nas primeiríssimas linhas. E se tal não desejassem, se algum livro não estivesse fácil em meio ao mar de lama e fúria, bastava uma consulta a Catilinárias de Cícero em qualquer buscador da rede, ou da web, como preferem chamar.
Ali seria visto que Cícero conclamava Catilina a desaparecer do Senado, que deixasse o atrevimento de comparecer àquela casa, porque estava a chefiar um exército de revolucionários prontos a marchar contra Roma, e derrubar a República, e assassinar os senadores. Enquanto Delúbio, bem, ali estava no Congresso muito contra a vontade, pedindo aos deuses a hora de partir, com ou sem a ajuda de Júpiter Stator.
O tempora, o mores!, bradou-lhe ao fim o nobre deputado, para melhor se fazer ouvir. Ao que as câmeras de todo o Brasil mostraram: Delúbio Soares, o falso Catilina, grogue, sob efeito de remédios, sem nem piscar com os olhos mortiços. ‘Que digo, vive? Antes vem ao Senado, é participante do conselho público, assinala e designa com os olhos, para a morte, a cada um de nós… Muito tempo há, Catilina, que tu devias ser morto por ordem do cônsul, e cair sobre ti a ruína que há tanto maquinas contra todos nós’, poderia continuar noite adentro o nobre relator, vestido no papel do saudoso Marco Túlio Cícero. A tragédia sempre volta como uma comédia.
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Jornalista e escritor