O percurso de “Cidadãoquatro” lembra as velhas histórias de espionagem, aquelas com muitas viagens ao redor do mundo, ao estilo James Bond.
Num momento, o foco do documentário da diretora Laura Poitras está em Washington, acompanhando a repercussão das revelações de Edward Snowden; em outro, vai para Hong Kong, onde Laura se encontra com Snowden em sigilo; há situações em que o filme passa pelo Rio, onde mora Glenn Greenwald, o jornalista que primeiro publicou as informações sobre como o governo americano espionou cidadãos comuns; até que, enfim, a trama termina em Moscou, a cidade em que Snowden conseguiu asilo político para se livrar da prisão.
Ou, talvez, não tenha terminado totalmente. Em cada escala, às vezes física, em outras virtual, “Cidadãoquatro” oferece clima de tensão e deixa incertezas para o futuro, compreensíveis considerando que sua história trata de uma das maiores conspirações de espionagem já reveladas. O documentário acompanha o período entre 2013 e 2014, em que Snowden, ex-funcionário da Agência de Segurança Nacional dos EUA (NSA, na sigla em inglês) vazou informações sobre o esquema internacional de vigilância do governo americano, sob alegação de combate ao terrorismo.
O caso teve uma repercussão gigante no mundo, levando a debates sobre privacidade e liberdades individuais. Já “Cidadãoquatro” saiu vencedor do último Oscar, na categoria documentário, e agora terá suas primeiras projeções no Brasil pelo festival É Tudo Verdade, que começa em São Paulo na próxima quinta-feira e chega ao Rio na sexta. No dia 16, às 19h, o filme terá exibição, seguida de debate, promovida pelo festival em parceria com O GLOBO, no Oi Futuro Ipanema.
– Muita gente entende esse episódio como uma ação do governo dos EUA em ameaça à democracia – avalia a americana Laura Poitras. – Se você observar a história de qualquer ditadura, o que se faz é espionar civis. Quando seus movimentos estão sendo vigiados, a ponto de você não conseguir ter uma conversa com um amigo, então você perdeu seus direitos fundamentais.
“Casa cercada de mato e cheia de cachorros”
Diferentemente do que costuma acontecer em documentários, não foi Laura que procurou o objeto de seu filme. Foi exatamente o contrário: em janeiro de 2013, Snowden escreveu para a diretora um e-mail enigmático, em que contava ter revelações e provas sobre atividades no mínimo questionáveis praticadas pelo governo dos EUA.
“Laura, neste momento não posso oferecer nada mais do que minha palavra. Sou um funcionário sênior da inteligência do governo”, escreveu Snowden, identificando-se como Cidadão Quatro. Um mês antes, ele já havia contactado o americano Glenn Greenwald, na época jornalista do diário inglês “The Guardian”, mas morador do bairro de Santa Teresa, no Rio.
– Eu já havia filmado o Glenn no Rio em 2011, antes de o Snowden aparecer. Eu me interessei pela história daquele jornalista que havia conseguido tornar seu trabalho tão relevante morando numa casa cercada de mato e cheia de cachorros, no Rio – conta Laura. – Aí, algum tempo depois, o Snowden nos procurou. Eu não sabia que ele já tinha falado com o Glenn, mas meu instinto me indicou que aquele negócio era gigante. Eu me mantive em alerta para ter certeza de que não se tratava de alguma armação, mas fui adiante.
Em comum, Greenwald e Laura chamaram a atenção de Snowden por seus trabalhos em cobrir ações do governo dos EUA. A diretora, por exemplo, já havia lançado “My country, my country” (2006), documentário indicado ao Oscar sobre a rotina de um Iraque ocupado por tropas americanas. Os filmes levaram seu nome a ser incluído numa lista de vigilância dos EUA, o que, na prática, fazia com que ela fosse constantemente interrogada em aeroportos. A situação fez com que a diretora se mudasse para Berlim, outra cidade que aparece no trajeto do documentário.
– Durante a produção de “Cidadãoquatro”, nada aconteceu, ninguém do governo nos parou para tentar nos impedir – conta Laura. – Mas imagino que eles tenham considerado opções, se deveriam ou não tentar intervir. Escolheram não se meter. É importante dizer que, por mais que eu seja crítica às políticas internacionais dos EUA, ainda se trata de um país que acredita na liberdade de expressão e de imprensa.
Cineasta defende asilo no Brasil
O primeiro encontro pessoal entre Laura, Greenwald e Snowden aconteceu em junho de 2013, em Hong Kong. No mesmo mês, as revelações sobre a espionagem da NSA começaram a ser publicadas nos jornais “The Guardian” e “Washington Post”, em série que rendeu aos veículos um prêmio Pulitzer. Em julho, Greenwald, junto aos jornalistas José Casado e Roberto Kaz, utilizou os dados de Snowden para revelar, em reportagens publicadas pelo GLOBO, como a espionagem da NSA se espalhou na América Latina. O trabalho levou o Prêmio Esso de Reportagem.
Por isso, o Brasil aparece em diversos momentos de “Cidadãoquatro”. Greenwald é mostrado em casa, na redação do GLOBO ou ainda no Galeão, recebendo seu companheiro, David Miranda, depois que este foi detido para interrogatório pela polícia de Londres por nove horas, com base na lei antiterrorismo da Inglaterra. O filme também mostra o jornalista em Brasília, prestando depoimento a senadores sobre a espionagem americana no Brasil.
– Eu voltei ao Rio pela segunda vez duas ou três semanas depois de Hong Kong – lembra Laura. – Já era um momento mais tenso, tínhamos decidido, por exemplo, que iríamos evitar viajar para os EUA naqueles meses. Muita gente me alertou que poderia haver agentes da CIA no Brasil, que eu seria seguida. Mas não tive problema.
Ainda em Moscou, Snowden busca novo país para se asilar e assim evitar ser preso pelo governo americano. Para Laura, o Brasil é uma opção:
– Os advogados dele estão considerando o melhor lugar para ele. Se o Brasil oferecesse asilo, seria ótimo. Os dados ainda vão render. É uma apuração demorada, cheia de detalhes técnicos e nomes codificados. Mas muita coisa pode surgir.
***
André Miranda, do Globo