Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os segredos eternos

Em sociedade, tudo se sabe? Não! Está no ar uma grave questão: os segredos de Estado devem ou não ser do conhecimento dos cidadãos? Alguns são prorrogados periodicamente e os brasileiros ficam sem saber de muitas coisas.

Mas há uma instituição especializada em segredos eternos. Muitos deles estão guardados há, pelo menos, mais de 17 séculos, desde que, sob o imperador Constantino I, foi convidada a apropriar-se das estruturas, inclusive jurídicas, de Roma e passou a administrar a nova instituição com poderes de Estado. Uma das práticas que ela mais utilizou e tem utilizado é a do segredo, sobretudo do sigilo da confissão.

Convido os leitores a um estudo de caso que tire um pouco da estreita política de nossos dias essa grave questão. Os leitores sabem que entre as vozes que se erguem para defender segredos de Estado estão aqueles que temem a revelação, não dos segredos da Guerra do Paraguai, mas de seu próprio passado, pois alguns deles têm como inconfessável o próprio passado.

Ciências e técnicas

Os segredos registrados nas cartas do famoso Cura d’Ars jamais foram revelados. Cada vez que lemos um livro de história das mentalidades, de usos e costumes, por mais atentos e aplicados que sejam os pesquisadores, no máximo somos informados de que eles sabem das cartas daquele humilde pároco, mas desconhecem seu conteúdo.

E quem foi esse personagem? O francês João Maria Vianney era criança nos arredores de Lyon, onde nascera, quando estourou a Revolução Francesa. Na juventude foi acometido de graves doenças e ficou 14 meses internado em hospitais da redondeza. As enfermidades o impediam de servir nos exércitos de Napoleão. Foi para o seminário, mas ali as coisas não melhoraram para ele. As aulas eram ministradas em latim e ele não entendia nada. Tirou notas baixíssimas em todas as matérias. Foi desligado. Tentava entrar em outros seminários e escolas cristãs, mas era sempre recusado.

Foi quando um padre se interessou por ele e se dispôs a ensinar-lhe todas as matérias principalmente Teologia, em francês, a língua materna do professor e do aluno. Voltou a fazer os exames e foi readmitido no seminário.

Napoleão perdeu tudo em Waterloo e os austríacos entraram na França. No dia 13 de agosto de 1815, aquele jovem chamado de burro por todos foi enfim ordenado sacerdote e no dia seguinte rezou sua primeira missa.

O homem que lhe ensinara as principais disciplinas necessárias a um sacerdote, agora era bispo. Todos sabiam que ele protegia o jovem padre, de quem continuava professor. A França vivia os esplendores do Iluminismo, da Idade da Razão. E João Maria continuava “burro”. Era o homem errado no lugar errado, o seu país. E era o homem errado também na Igreja francesa, cujos padres primavam por ciências, técnicas e artes que ele não dominava, como a oratória. Rebatendo as críticas, o bispo dizia: “Não sei se ele é instruído, sei que é iluminado”.

“É preciso concluir”

Vendo que o jovem padre estava deslocado na paróquia para a qual tinha sido designado, o arcebispo de Lyon transferiu Vianney para uma localidade chamada Aldeia de Ars-en-Dombs, de apenas 300 habitantes, onde chegou em 9 de fevereiro de 1818. Ele estava perdido e não sabia encontrar a vila porque uma densa neblina cobria tudo. Uma criança o ensinou a chegar até a sede.

João Maria era “burro”, mas gostava de ler. Levou na bagagem 300 livros. Ars era pequena no tamanho, mas tinha grandes problemas. Com muitas casas de jogatina, de prostituição, de vícios, mais parecia uma Las Vegas pioneira. E poucos frequentavam a igreja, naturalmente.

Mas alguns se confessavam. O sigilo da confissão, que desde o alvorecer do segundo milênio, quando o sacramento, por meio do ato de contrição, faz com que o penitente esprema a alma diante do confessor, tem mais de mil anos de garantia. E a igreja jamais abriu um só dos segredos ali confiados. O padre pode até abandonar a batina, mas não há um só caso de que um deles tenha rompido a confidência de ninguém.

João Maria, que se alimentava de batatas, lia e rezava muito, ficou apavorado com a diversidade e a abundância de pecados que jorravam copiosamente todas as semanas e cada vez por maior número de bocas. Ele aumentara o número de confitentes pelas visitas que fazia às casas. Chegava, ia entrando devagarinho e com sua humildade e paciência ia oferecendo conforto espiritual, dialogando com todos, paroquianos ou não.

Dos pecados, sem a identificação dos pecadores, naturalmente, ele fez registros nas três centenas de cartas que enviou aos superiores. Além deles, ninguém mais teve acesso àquelas cartas. Há indícios de que, como a carta que Aníbal, antes de se suicidar, deixou escrita para Cipião, o Africano, que o derrotou em Zama, tenham sido igualmente jogadas ao fogo. Aliás, na ocasião, Cipião convenceu Aníbal a travar a batalha – o cartaginês recusava enfrentar os exércitos romanos, que sempre vencera – sob o seguinte argumento: “Você não concluiu o trabalho em Roma, ficando às portas da cidade, é preciso concluir, vamos à batalha e quem vencer, termina com isso”.

Bifurcação no caminho

Quando Vianney morreu, no dia 02 de agosto de 1859, cerca de trezentos padres e uma multidão de outras pessoas compareceram a seu funeral. Quando chegara, não tinha sido recebido por ninguém.

Ars recebia desde há alguns anos uma multidão de peregrinos que vinham confessar-se. Sua fama de conselheiro compreensivo, que entendia profundamente aqueles que o procuravam, ganhou a França, depois o mundo, depois a História.

Uma leitura mais leiga de sua biografia pode explicar seu tremendo sucesso como confessor por outras vias. Ele tirou os clientes das tabernas, das casas de jogo e da prostituição. E seus paroquianos aplicaram-se ao trabalho e à oração, abandonando a vida de vícios. É mais ou menos o que obtêm hoje as igrejas evangélicas das periferias das metrópoles brasileiras. Os donos daqueles empreendimentos tiveram diante de si um caminho que se bifurcava: ou iam embora ou mudavam de ramo, instalando ali outros empreendimentos.

Como acabamos de ver, para mudar não é preciso romper segredos, mas convém saber que tipo de segredos precisamos guardar.

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[Deonísio da Silva é escritor, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo, professor, pró-reitor de Cultura e Extensão da Universidade Estácio de Sá, do Rio de Janeiro, autor de A Placenta e o Caixão, Avante, Soldados: Para Trás e Contos Reunidos (Editora LeYa)]