Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os sonhos das mães solteiras

Fui na contramão dos preparativos e das emoções que fecharam a semana com o yes do príncipe William a Kate Middleton, na abadia de Westminter. Não que despreze os contos de fadas, ainda mais considerando que por trás dos véus, grinaldas, anéis e beijocas trocados para o delírio do público, a economia britânica contabilizou, com o enlace matrimonial, um ganho de três bilhões de dólares. Que me perdoem os sonhadores; as moças e moços que, no mormaço do casamento real, provavelmente sonham com marcha nupcial, daminhas de honra, guloseimas e quiçá virgindade preservada e idílica lua-de-mel, mas passei a semana pesando na balança outros valores.

Num contraponto ao sonho e à beleza, listei o terceiro bebê jogado no lixo pela mãe em menos de um mês. Desvio de personalidade e falta ou falhas na educação são justificativas para que se promova a caça às mães solteiras, com direito a humilhações e algemas. Queiram ou não, um dia essas infratoras desejaram seus príncipes encantados e sonharam ser mães; mães tortas, desajustadas, desinformadas, mas antes de tudo, mães.

Essas mães que abandonam filhos nas lixeiras têm idade entre vinte e trinta e poucos anos e pertencem a uma geração que cresceu, assistindo na televisão, abertamente, a especialistas e celebridades falarem sobre produção independente como se fosse o ato libertário na vida de uma mulher. Pena que nessa decisão, enquanto o homem era valorizado como reprodutor, tirava-se dele a responsabilidade sobre a gestação. Isso mesmo, sobre a gestação, pois é durante ela que a mãe solteira, abandonada, sob o peso da culpa de ter entrado numa roubada, dispõe de nove meses para planejar de cima de qual muro vai arremessar a cria; em que tipo de saco plástico vai envolvê-la; em que beco vai abandoná-la.

Olhar sobre nossas princesas

Pensão alimentícia deve ser cobrada desde o ventre como garantia de sobrevida da criança. Isto evitaria que os dedos apontassem apenas a cara da mãe, pois no ato do abandono elas é que são caçadas, nunca os pais solteiros. Para eles, geralmente sobra o prazer de exibir os pimpolhos já lavados, amamentados e enfraldados, como troféus sobre os ombros, vestindo camisa de um time de futebol. Para usufruir deste momento de orgulho, paga-se qualquer pensão alimentícia, mas se ela fosse disponibilizada ao futuro rebento desde a concepção dividiria responsabilidades psicológicas; evitaria riscos. Que isto sirva de reflexão aos juristas e aos que teimam em ver distinção entre as os direitos e deveres das mães e dos pais solteiros.

Ora, já é hora de parar de elevar à categoria de herói o pai que assume os filhos, que lava, passa e cozinha para mantê-los sem a companhia da mãe; já é hora de parar de acusar de irresponsável e desprevenida a mãe que deu à luz um ou mais filhos, resultado de produções independentes, como se suas carências e desgraças atuais fossem castigo merecido; já é tempo de a sociedade perceber que os bebês nas lixeiras não nasceram dali, não são frutos de geração espontânea, mas foram concebidos do cruzamento de homem e mulher.

Vendo William e Kate tão alvos no altar e a mídia tão incisiva e convincente na venda do “Dia das Mães”, me permito este olhar sobre nossas princesas que, ao contrário daquelas dos contos de fadas, não se chamam Saphiras, mas Jandiras; não se chamam Shênias, e sim, Efigênias. As Rains and Moons são nossas Raimundas que, ao invés de néctar, tomam sopa; que não tocam cítaras, mas telecoteco. São, antes de tudo, mulheres que vivem (pelo menos, deveriam viver) na atual democracia desfrutando os privilégios conferidos aos que nasceram sob o signo da beleza.

Mães e cidadãs

Explico meu ponto de vista indo um pouquinho lá atrás, quando a democracia brasileira ainda era carrancuda e feia. O presidente João Baptista Figueiredo pode ser referência do processo de otimizar recorrendo-se a recursos estéticos, hoje incorporados à imagem republicana. Lembram-se da troca dos sombrios e intimidadores raibans de Figueiredo por óculos de aros e lentes mais suaves para que sua imagem fizesse jus à abertura democrática? Os trinta anos do caso Riocentro estão pondo o ex-presidente em evidência, então será fácil observar a mudança. A mesma estratégia foi usada por Sarney, enquanto presidente da República que, a cada derrapada do Plano Cruzado, tinha a tonalidade do bigode otimizada para manter o otimismo da nação. A estratégia continuou até chegarmos à presidente Dilma Rousseff. Viva a monarquia, mas salve a nossa democracia femininamente bonita e vistosa!

Apesar de o “novo” Senado exibir conhecidos rostos velhos e sisudos, o ministério é bonito; a política feminina brasileira é bonita. Ela, que já havia tomado posse iluminada por Marcela Temer, continuou sendo ornada pelas belezas e graças de Iriny Lopes, Tereza Campelo, Luiza Bairros, Ideli Salvatti (pesquisem a lista e se deleitem, por favor); até o prefeito carioca Eduardo Paes contribuiu para colorir as páginas dos periódicos ao nomear a economista Maria Sílvia Bastos Marques como Autoridade Olímpica Municipal.

Daí porque volto os olhos e as atenções às mulheres jovens penalizadas e encarceradas em idade produtiva que jogam seus filhos nas lixeiras. Elas não estão fora da estatística que lhes confere percentual de maior eleitorado no país. Votam e são votadas, embora suas aspirações ainda estejam muitos distantes do que é possível conquistar pelo voto. Bonitas por natureza, sem a necessidade de muitos recursos de otimização da imagem, a moral das atuais mulheres no poder está assentada sobre os sonhos e suores de Elizabetta Valentini, Laura Brandão, Chiquinha Gonzaga, Nair de Teffé e, principalmente, de Bertha Lutz, mulheres que no início do século passado se posicionaram contra os privilégios masculinos e lutaram pelos direitos e respeito ao feminino.

Ano que vem, resultado da luta de Bertha Lutz, o decreto de 1932 que deu o direito de voto às mulheres completa 80 anos. É uma oportunidade única para que as políticas para a mulher sejam discutidas com causa e urgência, restituindo-lhes o direito de se sentir princesas, mães e cidadãs.

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Escritor, jornalista e autor-roteirista da TV Brasil