O conceito de uma vida obsessivamente voltada para a produtividade, alta competitividade e alta performance – expresso na frieza dos números ou suavizado pela retórica da responsabilidade social e sustentabilidade – produz diariamente más notícias, que alimentam a crise financeira mundial, milhões de desempregados, quebra de empresas. Também resulta, de uma maneira ou de outra, naqueles fatos do cotidiano, que envolvem os amigos e suas famílias, os amigos dos amigos, alguém da vizinhança. Enfim, aquelas notícias, com gosto de terror, que dão a sensação de que cada um pode ser a próxima vítima do desemprego, do assalto, da perda de alguém ou algo querido por conta da brutalidade, descaso, ou qualquer pretexto que nomeie a estupidez.
Quer um exemplo, pinçado do noticiário que tece nossa trama de insegurança social?
Na segunda-feira (9/2), o calouro Bruno César Ferreira, de medicina veterinária de uma universidade paulista, em Leme, quase não sobreviveu ao violento rito de trote, ministrado por quase uma classe de alunos veteranos. O ritualismo que lhe aplicaram teve diferentes momentos: ingestão excessiva de bebidas alcoólicas (que resultaram em coma alcoólico), ‘mergulho’ em uma piscina de lona cheia de pedaços de animais em decomposição e fezes, e uma sessão de chibatadas. O caso faz lembrar as sessões de tortura e abuso sexual promovidas por militares norte-americanos na prisão de Abu Ghraib, no Iraque, em atmosfera adolescente – e insana – de quem está a produzir fotos para um site de relacionamento, sem responsabilidade, por nada, pela fama.
Não é coincidência. O rito do trote teve origem no Brasil, em escolas militares, onde ainda hoje se propaga o mito de que a formação do caráter está diretamente ligada a submissão do corpo e da alma ao sofrimento e à humilhação.
Este caso de Leme, em uma escola de medicina veterinária, faz pensar sobre o destino e sorte dos animais que estarão sob os cuidados destes futuros médicos veterinários.
Más notícias
Outro exemplo, ainda na área médica, ou seja, onde se aprende a cuidar de pessoas, da vida, se deu na Faculdade de Medicina da Universidade Estadual de São Paulo (USP), em 23 de fevereiro de 1999, quando o então calouro Edison Tsung Chi Hsueh, foi encontrado morto na piscina da Associação Atlética Acadêmica Oswaldo Cruz. Segundo relatos anônimos da época, Edison foi obrigado a beber e a mergulhar na piscina.
Em outro caso, mostra que os anos de formação, passados na escola, pouco contribuem para o aprendizado e reflexão sobre a sensibilidade, o humanismo, o trato digno do ser humano e da vida. Recentemente, em novembro de 2008, um rito de passagem levou um grupo de 20 alunos da Universidade Estadual de Londrina (UEL), embriagado, próximo da formatura, a entrar no Hospital Universitário e soltar rojões para assustar os doentes da instituição.
Eventos violentos, narrados no ambiente de escolas tradicionais, colocam em questão o ensino e a instituição, que reduz as relações humanas e o conhecimento ao mero tecnicismo. Médicos, veterinários, e também outras profissões, são transformados em extensões de máquinas, tristemente disfarçados de homens e mulheres, com seus jalecos brancos, em contato com o paciente e suas famílias – pessoas –, que estão vivendo situações devastadoras, nas quais as habilidades éticas e estéticas, além das técnicas, de um médico, por exemplo, no mínimo consolam e confortam quem está sofrendo. Os doutores das máquinas, das UTIs, das letras indecifráveis e exames sem fim, precisam, cada vez mais, serem trocados – e tocados – pelos doutores da alegria: os geniais palhaços – Os Doutores da Alegria –, que humanizam os hospitais.
E aliás, no rol de más notícias, já se sabe que Os Doutores da Alegria são forçados a parar o trabalho nos hospitais do Rio de Janeiro. Foram abatidos pelo corte de recursos, em sua maioria, vindos da responsabilidade social das empresas, abaladas pela crise econômica.
******
Jornalista, professor da ECA-USP e diretor-geral da Associação Brasileira de Comunicação Empresarial (Aberje)