Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os verdadeiros urubus

Aconteceu mais de uma vez, durante o ano de 2007, quando eu fui repórter de Geral em um jornal local. Acontecia geralmente quando me mandavam cobrir algo para as páginas que levavam a palavrinha ‘polícia’ no cabeçalho. Mas sempre acontecia quando os envolvidos eram da classe média para cima.

Foram mais de 150 reportagens, mas um dos casos mais marcantes foi a morte de um pai e dois filhos (três policiais) quando um grupo de homens tentou assaltar a chácara deles, no interior de São Paulo. Foram feitos reféns, sabiam que seriam mortos se os criminosos descobrissem sua profissão e acabaram reagindo e morrendo. A cena era das mais tristes que já vi, ainda que, infelizmente, não tenha sido a mais triste de todas: uma grande sala de velório com três caixões, um ao lado do outro, separados por um metro e meio. O pai no meio, os filhos nas pontas.

Eu não queria estar ali. Eu queria estar seguindo as várias pautas que, no fim, acabaram na gaveta depois que me demiti. Histórias sobre urbanismo, mobilidade urbana, os estudos que se fazia com os dados da Comissão Municipal de Direitos Humanos para debater o acesso da população aos direitos básicos, uma compilação sobre as ONGs que recebiam dinheiro do município, a investigação do possível envolvimento de fiscais da prefeitura de São Paulo no suborno de camelôs. Eu queria ajudar às velhinhas que ligavam no jornal pedindo ajuda para conseguir que a CDHU lhes pagasse finalmente o dinheiro do terreno que havia sido expropriado. Ou o senhor que fiscalizava o posto de saúde perto da sua casa e denunciava que os medicamentos ficavam expostos ao sol.

Mas me mandaram cobrir o triplo assassinato com requintes de crueldade, heroísmo e drama familiar.

Casos chocantes

Cheguei ao cemitério antes de qualquer outro jornalista. Éramos eu, o motorista do jornal, que precisou ficar no carro, e uma multidão de ‘parentes e amigos’ entre aspas, composta em sua maioria por curiosos que estavam à toa, moravam ali perto e queriam ver com os próprios olhos a tragédia. Carpideiras e carpideiros em igual porcentagem.

Não entrei na sala do velório nem só porque não era necessário, mas também porque ela estava abarrotada. Eu, com meu metro e cinqüenta e cinco, subi na ponta dos pés para observar o comportamento das pessoas e descobrir quem eram os parentes ou amigos próximos o suficiente para fornecer informações precisas, mas distantes o suficiente para estarem emocionalmente aptos para a tarefa de contar brevemente detalhes sobre as três vítimas (a parte mais importante do crime). E sair de lá o mais rápido possível, rumo à delegacia para conseguir o resto dos detalhes da investigação.

Atrás de mim, me pergunta um homem:

– Você é jornalista?

– Sim. (Não preciso fingir que sou carpideira nem ‘parente ou amiga’, não estava ali investigando ninguém.)

– De que jornal?

– Jornal Tal.

– Conheci um repórter policial que trabalhou lá. O nome dele é Fulano. Você o conhece?

– Já ouvi falar. Ele era de antes da minha época.

– Pois ele era repórter policial. Mas, ao contrário de você, ele era ético.

Eu era novata, mas esperta o suficiente para saber que a única resposta era ‘o senhor tem o direito de ter sua opinião, eu só estou fazendo o meu trabalho’. Poderia ter perguntado onde está escrito que todas aquelas pessoas estavam ali unicamente porque conheciam os mortos e vieram velar por eles. Ou tê-lo processado por difamação e o obrigado a provar onde, no código deontológico do jornalismo, está escrito que é proibido entrar no cemitério ou até na sala do velório ou qualquer outra norma que eu, ali longe e quieta, estivesse transgredindo. Ou perguntado o número exato de histórias de velórios que este amigo dele contou nas muitas mesas de bar.

Mas o que eu queria mesmo é dizer que estava ali contra a minha vontade simplesmente porque, amanhã, as pessoas que, como ele, compram o meu jornal, vão querer ler sobre esse caso. E que, se ele não conhecesse esse pai e esses filhos, ou se estivesse longe do cemitério para ver o caso com os próprios olhos, era por culpa dele que eu estaria ali, contra a minha vontade, tendo que escrever sobre o triste fim desse pai e de seus filhos. No fim, chegou outro repórter e, como fazemos nessas situações, nos juntamos, esperamos até encontrar quem poderia falar conosco, e saímos de lá o mais rápido possível para continuar nosso trabalho.

Quem me mandava para esses lugares era o pauteiro. A tarefa do pauteiro é passar a pauta para o repórter no começo do dia, para que a matéria, no fim do dia, estivesse na página e o jornal fosse comprado. Se o jornal não é comprado, os anunciantes não anunciam, e o jornal perde receita, e o jornal fecha. E o jornal é comprado principalmente porque tem fotos insinuantes de mulheres, páginas e páginas de esportes, insultos ao partido político que você não gosta e elogios ao que você tem seu voto… E casos chocantes como o dos três policiais, um pai e dois filhos, assassinados ao tentarem reagir a um assalto. Como o empresário que havia perdido a mulher num acidente de avião e morreu em outro acidente de avião, um jatinho particular. Ou o fato de o quarto sucessor ao extinto trono brasileiro estar no vôo que caiu na costa brasileira.

Detalhes sórdidos

Talvez eu deva ter mais tolerância com o senhor que tentou me humilhar no cemitério que as pessoas que agora tentam humilhar quem está cobrindo o acidente aéreo da vez. Afinal, ele pode muito bem ter sido amigo do pai ou de um dos filhos, estava revoltado com a tragédia e descontou em mim sem querer. Mas aposto que você leu sobre esse caso. Ou pelo menos se lembra do acidente bizarro em que caiu o pneu do ônibus e matou um homem que estava no ponto esperando a condução. Pois é, também me mandaram cobrir essa pauta.

Um acidente aéreo tem mais destaque que o acidente de ônibus da equipe do Sertãozinho por dois motivos, um válido e outro inválido: os acidentes ganham importância de acordo com o número de mortos, e de acordo com o envolvimento de pessoas da classe dominante. O motivo válido quem provoca são as circunstâncias. A culpa do motivo inválido é toda sua, classe dominante. Porque é você que compra o jornal, e é para você que os jornalistas escrevem.

Você, que está pouco se lixando para assuntos muito sérios, mas depois tenta mobilizar a blogosfera com uma campanha contra a operadora de telefonia que te tratou mal.

Você, que sabe o nome do único tripulante do avião que tinha nacionalidade brasileira. Que criticou a futura notícia que fariam com os passageiros que iam pegar esse vôo, mas por vários motivos se salvaram. E que depois leu essa notícia do começo ao fim. Sinto dizer, mas os jornalistas, nesse caso, não são os urubus. Você é o urubu que terceiriza o trabalho da busca pelos detalhes sórdidos que tanto te atraem. Está na hora de todo mundo começar a assumir sua responsabilidade.

Quer solucionar esse problema? A palavra-chave é uma só: boicote. Não compre o jornal. Leia pela internet só as notícias sobre política, cultura e, vá lá, pode ler sobre o seu time de futebol. Mas não clique na manchete do jornal. Faça com que o quadro com as notícias mais lidas do seu portal preferido esteja limpo do nome ‘Air France’. Durante a rodinha no bebedouro, se alguém mencionar o acidente, mude de assunto, em vez de repetir o que acabou de ler, muitas vezes com algum dado errado (porque rigor jornalístico só se aplica a jornalistas, os fofoqueiros estão isentos, certo?).

Faça com que os jornais tenham que se redesenhar e repensar seu conteúdo. Para que a próxima novata que chegue ao jornal e proponha uma pauta que investigue para onde foram todas as pessoas despejadas de terrenos privados, mas abandonados, pela Prefeitura, no último ano, não tenha que escutar dos chefes a seguinte resposta: ‘Fizemos um extenso focus group com assinantes do jornal e eles disseram que não se interessam pelos problemas habitacionais da classe baixa’.

Eu me demiti para salvar a minha alma. Para poder dormir à noite. Por culpa das 90% de pautas que o leitor me forçava a cobrir, abandonei os 10% de pessoas que eu realmente ajudei. Como a esposa de um pintor que foi assassinado em uma chacina supostamente praticada por policiais, porque estava fora de casa na hora errada. Pai de sete filhos, o mais velho tinha 12 anos e por pouco não morreu junto.

Também me enviaram ao velório do pintor (chacina é coisa de pobre, mas rico adora ler sobre elas). Uma sala minúscula, abarrotada de gente, com muito menos ‘parentes e amigos’ entre aspas, porque todos naquele bairro já tiveram um parente ou amigo morto dessa forma e já não necessitam de detalhes sórdidos. Quando eu me preparava para ir embora, a esposa do pintor me pegou pelo braço e disse: ‘Muito obrigada por vir até aqui, vocês são as únicas armas que nós temos’.

A sorte das esposas dos pintores é que nem todos os jornalistas são tão fracos como eu.

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Jornalista