No mês em que se comemora o Dia do Jornaleiro, o Observatório da Imprensa exibido na terça-feira (24/9) pela TV Brasil homenageou os entregadores de jornais, sobretudo os meninos que perderam a infância no trânsito das cidades em busca de alguns trocados (vídeo aqui). Retrato pungente da infância negligenciada, os pequenos jornaleiros levavam a notícia das tipografias para a porta dos cafés, cinemas e cruzamentos das ruas mais movimentadas. Dotados de uma voz potente, tomavam as ruas nas primeiras horas da manhã e no fim do dia, gritando as manchetes dos jornais. Espertos e comunicativos, engrossaram o batalhão de crianças obrigadas a abrir mão da infância – e muitos deles perderam a vida entre carros e bondes na luta diária pela sobrevivência. Indiferente ao drama dos meninos invisíveis, a imprensa da época dava pouco destaque à peça mais vulnerável no processo de distribuição da notícia.
No editorial que abriu o programa, Alberto Dines lembrou a influência dos meninos vendedores de jornais na sua infância: “Aprendi o que era notícia ouvindo estas manchetes sonoras, compreendi que há notícias mais importantes do que outras quando reparei naqueles meninos de uniforme de sarja azul, casquete na cabeça, uma bolsa no ombro cheia de jornais anunciando o que era mais dramático e mais sensacional. Crianças iguais a mim me ensinaram o que era jornal, o que era a vida, também o que era injustiça, fome, desamparo. Indiretamente, mostraram a magia do jornalismo” (ver íntegra abaixo).
A minguada imprensa do início do século 19 era vendida principalmente por assinatura. A partir de 1825 aumentou o número de jornais, o sistema de entregas se desenvolveu e as notícias impressas alcançaram também o interior. A comercialização em pontos fixos era feita nas tipografias ou em livrarias. No burburinho das ruas, os escravos se misturavam aos praticantes de pequenos ofícios e se converteram em intermediários entre a elite letrada e o papel impresso. Estudioso da atividade dos jornaleiros e das bancas de jornal, o historiador Viktor Chagas, da Universidade Federal Fluminense (UFF), explicou que, naquele momento, os órgãos de imprensa não tinham assumido a tarefa da distribuição. Luiz Carlos Soares, professor na mesma universidade ressaltou que algumas tipografias tinham escravos próprios ou alugavam o serviço dos “escravos de ganho”.
Os vendedores chegam ao Brasil
Em meados do século 19, os jornais passam a investir na distribuição avulsa e ambulante. Em 1858, A Atualidade contratou escravos e recém-libertos para vender os exemplares e outros jornais copiaram a ideia. Em 1876, o imigrante francês Bernard Gregoire apareceu na redação de A Província de S.Paulo, jornal que deu origem a O Estado de S.Paulo, e pediu autorização para vender o jornal pelas ruas. Recém-chegado à cidade, o intrépido Gregoire tinha experiência como distribuidor do Le Petit Journal, em Paris, e havia sido foi condecorado na Guerra Franco-Prussiana. Com um cavalo velho emprestado pelo jornal, uma touca branca e uma buzina de chifre para anunciar o produto, o vendedor escandalizou a cidade. A Província de S.Paulo foi ridicularizada pelos concorrentes. Para eles, um jornal respeitável não deveria permitir a venda volante. O vendedor foi ainda repreendido pela polícia por conta do barulho estridente de sua trombeta. Sua imagem foi eternizada no ex-libris do Estadão.
Em busca de alternativas para o sustento, uma onda de imigrantes italianos chegou ao Brasil nas últimas décadas do século 19 e mudou definitivamente o perfil dos vendedores de jornais. Em 1875, a Gazeta de Notícias decide contratar jovens italianos para distribuir a publicação pelas ruas. “Esses pequenos imigrantes chegam e encontram o seu meio de sustento um pouco ainda patrocinados pelos grandes jornalistas, pelos grandes diretores de redação que contratam esses pequenos imigrantes como contratavam ex-escravos naquele mesmo período. Era uma mão de obra barata, um sistema informal de distribuição de imprensa”, disse Viktor Chagas.
Filipina Chinelli, pesquisadora da Fiocruz que escreveu uma tese sobre jornaleiros italianos, destacou que este era um trabalho que os imigrantes conseguiam realizar sem grandes dificuldades: “Muitos não sabiam ler, mas conseguiam decorar a imagem do título da publicação”. Com a pronúncia carregada, os imigrantes instalaram o pregão da venda nas ruas. O historiador Marcus Bretas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sublinhou que aquele era um período de mudança. “É um momento que a imprensa está se transformando em uma indústria, em um grande negócio, expandindo a produção, surgindo novos jornais, cada vez mais buscando conseguir dinheiro com o público leitor. Vender jornais passa a ser algo significativo”, disse Bretas.
O poder dos italianos
Logo os meninos italianos cresceram e se converteram em poderosos empresários, sobretudo na área de entretenimento. “Os nomes que a gente conhece melhor são os Segreto, que vão dominar as diversões na cidade na virada do século 19 para o 20, até a morte do Paschoal Segreto, em 1920. Tem um espaço de comércio, diversão, jogatina legal e ilegal. O jogo do bicho entra como uma luva nesse espaço. Você vende o jornal e vende também a aposta do bicho. O poder desse grupo é muito forte, essas pessoas têm conexões, poder econômico, o controle dos teatros e o controle de alguns jornais”, lembrou Bretas.
Em 1906, 78 vendedores e distribuidores de jornal liderados por Gaetano Segreto fundam a Stampa, uma sociedade de auxílio. Mais do que ajudar aos seus pares, a sociedade dita as regras da circulação de jornais, ameniza a disputa interna pelos melhores pontos de venda e harmoniza as divergências com a imprensa.
O imigrante italiano Carmine Labanca ficou conhecido como o precursor da instalação das bancas de jornal no Brasil. “Ele monta uma banca a partir de caixotes de madeiras e começa então a comercializar com a justificativa de que ali era um ponto de passagem muito intenso e, portanto, se constituía como ponto de venda importante para aquele tipo de comércio”, explicou Viktor Chagas. No final do século 19, o prefeito da então capital federal proibiu apregoar nas ruas, mas a medida não foi cumprida. Em 1911, o governo determinou que apenas maiores de 12 anos, alfabetizados e autorizados pelos pais, atuassem como pequenos jornaleiros. E mais: estabeleceu um imposto para os vendedores e impediu que expusessem seus produtos no chão. A imprensa viu no decreto uma tentativa de cercear a liberdade de expressão. Os distribuidores italianos reagiram e o decreto acabou não saindo do papel. Ao longo das primeiras décadas do século 20, outras tentativas de enquadrar a distribuição de impressos foram feitas sem sucesso.
Vicente Scófano, presidente do Sindicato dos Jornaleiros do Rio de Janeiro, contou que seu pai chegou ao Brasil em 1927 e logo trouxe toda a família: “A rotina de um jornaleiro começava exatamente junto com o jornal. Meia-noite era a correria das redações para preparar o jornal para as máquinas. Nós já estávamos na rua a partir desse horário, ou mais tarde um pouco, aguardando nas bocas das máquinas a saída do jornal para levarmos para o nosso ponto de venda nas bancas. Nós ainda pegávamos o jornal quente da máquina; ele vinha para a nossa mão quente e muitas das vezes até com a tinta, [que] acabava ficando na nossa mão”.
A vez das crianças brasileiras
De meninos pobres a empregadores, os imigrantes italianos dominaram o mercado e passaram a delegar a venda ambulante. Nasceram os pequenos jornaleiros brasileiros. “A situação se reverte de certa maneira: esses grandes distribuidores, imigrantes italianos em sua origem, começam a contratar menores brasileiros – obviamente também pela mesma circunstância, mão de obra barata, não exatamente qualificada –como os seus próprios pequenos jornaleiros”, disse Viktor Chagas. O historiador comentou a dura rotina dos meninos: “Eram menores de rua, menores abandonados, menores que tinham família mas que, para complementar a renda familiar, precisavam encarar uma rotina de trabalho absolutamente massacrante de muito mais do que 12 horas por dia, circulando pelas ruas das capitais, gritando suas manchetes, acordando por volta de 3 ou 4 horas da manhã, dormindo muitas vezes nas portas das oficinas dos jornais”.
A relação entre os distribuidores e o pequeno jornaleiro era marcada por maus-tratos e exploração. No lugar da escola e do caderno, a rua e um maço de jornais. Nada de hora do recreio, brincadeiras ou bicicleta. Em 1926, o Juizado de Menores tentou regular a atividade dos meninos ambulantes e estabeleceu normas para a profissão, mas a lei não foi cumprida. “Justamente porque que eles viviam nessas condições, na rua, estavam propensos a determinados aprendizados e práticas. Aprendizados relacionados aos vícios da bebida, do cigarro e aos pequenos furtos ou pequenos delitos. A partir dos anos 1930, esse personagens se constituíam em um problema social a ser resolvido pelas políticas públicas”, disse a historiadora Ivana Guilherme Simili. De acordo com ela, os meninos eram vistos como “figuras simpáticas” pelo o público porque se comunicavam bem com a população.
Entre os muitos meninos que perderam a infância vendendo jornais está o notável sambista e pintor Heitor dos Prazeres. Ex-entregador e engraxate, o músico trocou a dura vida das ruas pelos palcos e decidiu sensibilizar a sociedade para o drama do pequeno jornaleiro. Em 1931, o sambista ofereceu ao vespertino A Noite a “Canção do Jornaleiro”. O pesquisador musical Sérgio Cabral destacou a popularidade da música: “Era uma canção que todo mundo sabia que existia porque o Heitor se encarregava sempre de cantá-la. Essa música fazia parte, era importante na obra dele. Eu acho maravilhoso porque a música tem a função que os hinos têm. O retrato musical, o lado musical de empreendimentos. Eu acho até que a própria popularidade do pequeno jornaleiro se deve muito a essa música”. Gravada pelo menino Jonas Tinoco, a música figurou entre as mais tocadas nos anos seguintes.
Um menino de metal
A canção desencadeou uma rede de solidariedade e o jornal A Noite encabeçou uma campanha para a construção de um abrigo para menores carentes. Para estimular a população, o interventor federal no Rio, Pedro Ernesto, doou uma vultosa quantia. Em 1934, com apoio do interventor, o pequeno jornaleiro ganha uma estátua em sua homenagem cravada no centro do Rio de Janeiro. Inspirado na letra de Heitor dos Prazeres, o artista Fritz perpetuou em bronze a triste figura do garoto que grita as manchetes. No fim dos anos 1930, o governo do presidente Getúlio Vargas começou a ver o jornaleiro como um importante mediador no processo de comunicação. Sensibilizada com a dura rotina dos meninos que vivam nas ruas, a primeira-dama Darcy Vargas decide angariar fundos para uma obra social, a Casa do Pequeno Jornaleiro.
“Darcy Vargas sempre passava pela região central do Rio de janeiro e observava aquelas crianças, aqueles garotos vendendo jornais. Isso chamou a atenção dela e fez que um dia ela parasse para conhecer um pouco melhor quem eram aqueles meninos. E, na conversa que ela teve com os garotos, ela descobriu que eram meninos entre 12 e 18 anos que vendiam jornais. Alguns deles moravam nas favelas quando tinham famílias, outros moravam na rua, e viviam da venda dos jornais. Alguns deles inclusive eram arrimos de família”, contou Ivana Guilherme Simili. Viktor Chagas ressaltou o papel político da primeira-dama durante o regime Vargas e, especialmente, no Estado Novo: “Pode-se dizer que, de certa forma, o que Vargas assumia para si como grande pai dos trabalhadores, aquele regime que é por muitos pesquisadores caracterizado como populista, se reverte, de certa maneira, na figura da dona Darcy Vargas a partir de suas ações sociais”.
Para concretizar o projeto, a primeira-dama montou uma rede de apoio e buscou doações em diversos setores da sociedade. A Casa do Pequeno Jornaleiro foi inaugurada em 1940. Ao ingressar na instituição, cada menino ganhava um uniforme e a promessa de um futuro melhor. Lá, os jovens vendedores era alimentados, tinham assistência médica e oportunidades para a prática de esportes. Darcy Vargas cuidava pessoalmente de cada detalhe do projeto. O bando inquieto e indisciplinado que perambulava pelas ruas era educado de acordo com os rigorosos preceitos pedagógicos dos anos 1940. Sob os olhos atentos da primeira-dama, os meninos recebiam visitas ilustres, participavam de festas e passaram a ser enaltecidos pela imprensa. E os pequenos jornaleiros ganharam um padrinho ilustre – o cantor, compositor e ator Blecaute, também conhecido como o “General da Banda”.
“O Blecaute tinha muita sensibilidade em relação à causa das crianças por ser órfão. Com seis anos de idade, ficou órfão de pai e mãe e foi criado pela tia dele. Ele era da etnia negra, tinha ascendência de escravo, era paupérrimo. Tinha jogado a sorte para sobreviver e fazer amigos vendendo jornal, e foi pequeno jornaleiro em São Paulo, quando ainda não existia a casa aqui no Rio de Janeiro”, lembrou o pesquisador musical Luís Fernando Vieira. Próximo ao presidente Vargas, Blecaute foi convidado para atuar como patrono da Casa do Pequeno Jornaleiro: “A relação dele com Vargas era muito boa porque era de admiração. O presidente Vargas o admirava muito e sempre o convidava para participar nas festas oficiais, e com isso eles tiveram um passe de bola muito rápido. Como ‘general da banda’ ele desfilava na Avenida Rio Branco todos os anos, fazendo a promoção da Casa do Pequeno Jornaleiro, junto com os garotos da casa”.
As memórias dos meninos
A Casa do Pequeno Jornaleiro idealizada pela então primeira-dama no Rio de Janeiro inspirou a criação de instituições de amparo em outros estados. Ex-interno no Maranhão, o ministro aposentado Edson Vidigal relembrou os tempos como pequeno jornaleiro nas ruas de São Luís: “Eu não tinha freguesia fixa. Já naquele tempo havia reserva de mercado: o cara podia colocar o outro para correr se ele tentasse invadir aquela área. Eu ia pendurado no bonde com aquele montinho de jornal debaixo do braço. Mas o que é curioso é que antes de eu sair para essa rotina, eu parava em algum canto e ia ler todos os jornais. Primeiro eu me inteirava, e com isso eu tinha o que dizer para o possível comprador do jornal: ‘o jornal tem fulano de tal escrevendo sobre isso e tal’. Não existia banca de jornal, não tinha televisão, o rádio era o único instrumento, mas ninguém ia anunciar no rádio. Então, o jornaleiro era o verdadeiro difusor, ele era o meio da mensagem. Sem o jornaleiro o jornal não chegava a lugar nenhum”.
O programa entrevistou dois ex-pequenos jornaleiros que tiveram abrigo na casa do Rio de Janeiro. “O que eu tinha aqui, nunca pensei, nunca tinha na minha casa. Eu não tinha cama na minha casa, aqui eu tinha minha cama, tinha um local para eu recrear, enfim, eu tinha uma liberdade que na minha casa eu não tinha”, disse João Carlos Francisco. De sua parte, Gomercino Grego contou como fazia para atrair os clientes: “‘Extra! Extra! Saiu a notícia!’. Mentia às vezes, porque não tinha notícia nenhuma, aí vendia. ‘Olha aí, hoje saiu a revista Manchete especial falando da Ângela Maria!’. A gente gritava o jornal porque quanto mais a gente vendia, mais a gente ganhava. Era ruim quando chovia porque tinha lugar que não tinha marquise, então tinha que tirar jornal, enrolar no plástico e ficar vendendo na mão, nas filas dos ônibus. Mas quando não chovia, era uma maravilha”.
Uma disputa em vários atos
Em 1942, o governo Vargas promulgou uma série de medidas para controlar a distribuição da notícia impressa, mas não conseguiu erradicar o trabalho infantil na venda de jornais. O setor de distribuição de impressos passava por uma forte agitação. Com a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial contra os países do Eixo, aumentou a pressão pela quebra do monopólio italiano da distribuição. Pela primeira vez, um grupo de jornaleiros brasileiros chegou ao poder no sindicato da então capital federal. “A primeira medida que tomam diante do Vargas é o pedido de promulgação de um decreto em favor dos distribuidores brasileiros, dizendo: ‘Essa distribuição está sendo monopolizada pelos italianos. Nesse contexto em que a gente está vivendo, exatamente de um conflito com italianos na Segunda Guerra, precisamos tomar medidas preventivas contra isso porque a liberdade de imprensa está em jogo’. O que o Vargas diz é: ‘A partir de agora os jornaleiros devem ser todos brasileiros, mas aqueles que são italianos e que já se ocupam desses postos podem continuar distribuindo seus jornais e suas revistas’”, explicou Viktor Chagas.
Articulados e com forte poder de pressão sobre a imprensa e o governo, os italianos retomaram o sindicato. “Nesse mesmo ano, [houve] o assassinato de um vendedor de jornais, empregado de um proprietário de banca italiano, assassinato de um brasileiro por um italiano por questões de conflitos pessoais. [Houve} teve também por volta de agosto, setembro, desse mesmo ano um incêndio no Largo da Carioca de uma série de bancas de madeira por conta desse dito monopólio da distribuição”, disse Viktor Chagas.
A década de 1950 marca uma importante mudança para o pequeno jornaleiro. Com a crescente profissionalização da imprensa, o processo de distribuição se modernizou e o número de assinaturas, cresceu.
Em 1960, o Rio de Janeiro deixou de ser capital federal e os órgãos do governo foram transferidos para Brasília. O número de jornais em circulação começou a cair. A Constituição federal de 1988 proibiu o trabalho nas ruas, considerado um dos mais penosos, para menos de 18 anos. Dois anos depois, o Estatuto da Criança e do Adolescente ofereceu ampla proteção aos menores. E, para eliminar definitivamente a participação das crianças no processo de circulação da notícia, o Ministério Público do Trabalho firmou um acordo com jornais e empresas distribuidoras para impedir a contratação de menores.
Meninos eternizados em quadrinhos e filmes
Das ruas para a ficção. Nos anos 1940, o herói dos quadrinhos Spirit ganhou um ajudante especial para policiar a cidade, o pequeno jornaleiro Gordura. O crítico de cinema e jornalista Rodrigo Fonseca comentou que o personagem era secundário, mas revelador: “Ele se torna efetivamente um jornaleiro para ajudar o Spirit, que é um super-herói que de volta da morte, a policiar a cidade dele. É um personagem interessante exatamente porque une essa ideia que é muito viva, do jovem jornaleiro ser alguém que se movimenta pela cidade”. Na mesma época começa a ser publicada a série Newsboys Legion, que décadas mais tarde seria incorporada às histórias do Super Homem. “Esses personagens na verdade são garotos órfãos que são explorados comercialmente por vilões. Eles conseguem se rebelar e, depois de se libertarem, continuam trabalhando como jornaleiros para andar pelas cidades, mapearem o que existe de errado, e tentar, de uma certa maneira, combater o crime com os poucos recurso econômicos e até físicos que têm, porque são crianças”, disse Fonseca.
No filme Luzes da Cidade, de Charles Chaplin, pequenos jornaleiros são testemunhas de uma das histórias de amor mais tocantes do cinema. “Embora seja um personagem coadjuvante para o Chaplin, que encarnava a figura do lúmpen, do marginalizado, do vagabundo, do fora dos ofícios convencionais, os jovens jornaleiros eram figuras marginalizadas; eram crianças órfãs, na sua maioria, que tentavam sobreviver vendendo notícias. Isso é importante para a dramaturgia dele”. Fonseca citou outro filme marcante: “Já que a gente fala do valor da notícia e do valor da notícia encarnado naquele que a vende, que é o jornaleiro, a encarnação mais famosa e engraçada da banca de jornal que se tem notícia no cinema americano, principalmente em Hollywood, é um filme do Woody Allen, um filme absolutamente genial dos anos 1970, chamado Bananas. Existe uma sequência hilariante em que o Woody Allen, totalmente atrapalhado, tenta comprar uma revista pornográfica em uma banca de jornal que é frequentada apenas por velhinhos e velhinhas bem comportados e polidos da comunidade judaica dos Estados Unidos”.
Nos anos 1990, o pequeno jornaleiro é homenageado com um musical dos estúdios Disney. O filme Newsies relembra a histórica greve organizada pelos meninos de Nova York, em 1899. Centenas de crianças lideradas por “Piscadela” e “Botinas” cruzam os braços e lutam por melhores condições de trabalho. Seus adversários são ninguém menos que os magnatas Joseph Pulitzer, proprietário do New York World e William Randolph Hearst, dono do New York Journal. O estopim do movimento é o reajuste do preço dos jornais por atacado provocado pelo início da Guerra Hispano-Americana. Os jornais não saem às ruas durante dias. As crianças não conseguem reduzir o preço dos diários, mas mudam as regras de encalhe; saem parcialmente vitoriosas e entram para a história.
No encerramento do programa, Alberto Dines comentou as transformações no processo de distribuição da notícia: “Os pequenos jornaleiros emudeceram há algumas décadas, cresceram, ficaram adultos e desapareceram. Nas esquinas, bancas e quiosques, perdidos no meio de quinquilharias e chicletes, jornais e revistas também perderam a voz. Um jornal, entregue na porta de casa, não fala; manchete muda não emociona. O tweet é um pio, mas é humano – é virtual. Isto talvez explique alguma coisa”.
Os pequenos jornaleiros
Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 702, exibido em 24/9/2013
Esta é uma edição especial, homenagem ao Dia do Jornaleiro e principalmente ao pequeno jornaleiro. Manchetes são escritas, portanto não falam, mas eu as ouvia desde criança – gritadas no bonde, nas esquinas e ruas do centro do Rio.
Aprendi o que era notícia ouvindo estas manchetes sonoras e compreendi que há notícias mais importantes do que outras, quando reparei naqueles meninos de uniforme azul, casquete na cabeça, uma bolsa no ombro cheia de jornais, anunciando o que era mais dramático e o mais sensacional. Crianças iguais a mim me ensinaram o que era jornal, o que era a vida, também o que era injustiça, fome e desamparo. Indiretamente, mostraram a magia do jornalismo.
O pequeno jornaleiro é descendente direto dos camelôs que, antes, durante e depois da Revolução Francesa anunciavam panfletos e pasquins satíricos e revolucionários. Em Paris foram chamados de patos, canards, porque grasnavam os papéis que vendiam. Mesmo quando estavam proibidos pela censura.
Quando os jornais começaram a alcançar grandes tiragens, os quiosques e as bancas mostraram-se insuficientes – era preciso levar os milhares de exemplares até os leitores espalhados pela cidade. Primeiro usaram-se adultos, depois alguém descobriu que crianças poderiam fazer a mesma coisa por um custo irrisório.
Também foram os franceses que entronizaram o deus Mercúrio, o deus do comércio e do intercâmbio – aquele com as asinhas no capacete e nos pés – como o símbolo da imprensa. É o deus das trocas. Filhos de Mercúrio, mercuriais, volantes, incansáveis, os pequenos jornaleiros ajudaram a construir uma indústria e uma instituição. Ajudaram a criar a poderosa imprensa e o quarto poder. Heróis anônimos, perderam a infância na luta para manter vivo um dos esteios da democracia.
Os arautos da liberdade, em muitas ocasiões, foram estes meninos e adolescentes, sem liberdade, que engrossavam a voz para tornar os seus apelos mais fortes e candentes. Onde houvesse um jornal, havia um coro de meninos entoando manchetes e as ideias nelas contidas. E não apenas aqui, nas esquinas do mundo inteiro. O pequeno jornaleiro é miúdo e global.