Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os predestinados

A esta altura, a maioria dos leitores ouviu falar do incidente. A personalidade de TV e empresária Oprah Winfrey acusou a vendedora de uma butique de Zurique de ter se recusado a lhe mostrar uma bolsa de US$ 40 mil. A ignorância da jovem é confirmada pelo racismo da reação, infelizmente comum na Suíça hoje, e não pelo fato de que ela não reconheceu a mulher cuja fortuna é avaliada em US$ 2.8 bilhões. O incidente foi introduzido na usina multiplicadora de notícias de celebridades com precisão suíça pela própria Oprah, numa entrevista a um programa de entretenimento, a mensagem cuidadosamente calibrada para expor o racismo estúpido sem arranhar seus status no panteão que ocupa.

Afinal, o lema da pontificadora-chefe da vida americana é Viva a Melhor Vida Possível. Quando Oprah Winfrey repete seus slogans de triunfo sobre adversidade – e esta mulher estuprada por parentes na infância entende do assunto – eu me lembro da cena de abertura do filme Ponto Final, de Woody Allen, de 2005. A bola de tênis bate na rede e quem sabe de que lado da quadra vai cair?, lembra o narrador, nesta história em que a sorte intervém a favor do protagonista.

É interessante como, à medida que a disparidade de renda cresceu nas últimas três décadas nos EUA, aumentou igualmente a narrativa da meritocracia no rarefeito universo do privilégio. Poucos conhecem a propaganda da meritocracia como o escritor Michael Lewis, autor de livros como Bumerangue, A Nova Novidade e O Treinador: Lições Sobre o Jogo da Vida. Em junho do ano passado, ele fez o discurso de formatura da turma da prestigiada Universidade de Princeton, onde havia se formado em História da Arte, 30 anos antes.

Lewis lembrou que, apesar da ambição de escrever, continuava perdido e sem emprego, aos 24 anos, quando, por sorte, se encontrou sentado num jantar ao lado da mulher de um alto executivo da Salomon Brothers. Ela azucrinou o marido para receber o jovem no banco de investimentos onde nasceu a farra de Wall Street nos anos 80. E, por sorte, o entediado funcionário que recebeu Lewis o colocou na divisão de derivativos. Em pouco mais de um ano, munido de seu conhecimento sobre escultura renascentista, recebia centenas de milhares de dólares de bônus e aconselhava investidores a aplicar seus milhões.

Mediocridades equivalentes

Mérito? Claro que não, admite Lewis, que pediu demissão e foi escrever seu primeiro bestseller, O Jogo da Mentira, sobre a orgia que tinha testemunhado. Lewis, um excelente jornalista investigativo e escritor elegante, diz que a sorte é um elemento crucial no resultado da sua narrativa de personagem hoje rico e famoso. Naquela tarde em Princeton, ele pediu aos formandos que não façam a besteira de racionalizar o próprio sucesso.

Os bônus de Wall Street, os salários estratosféricos de CEOs não são produto exclusivo da matemática do mérito, e sim de resultados que dependem em parte da sorte. Sua mera entrada na universidade, advertiu os jovens, já traz embutido o acaso. E com a boa sorte vem a obrigação para os que tiveram má sorte.

Na formatura de Harvard deste ano, Oprah Winfrey, além de receber um doutorado honorário, fez o discurso de formatura, pontuado pela habitual narrativa de triunfo. Entre outras frases, ela disse: “Não existe fracasso. Fracasso é a vida tentando nos fazer mudar de direção.”

“Oprah mentiu em Harvard”, disse um casmurro da imprensa americana, imprensa que dificilmente critica a empresária. Leon Wieseltier, um editor da revista New Republic, destaca o absurdo do que chama de a desvantagem cognitiva das elites, cujo sucesso é definido como a conclusão do alinhamento de forças interiores. Neste mundo, a mediocridade econômica é igualada à mediocridade humana. Tente dizer a um desempregado ou à família desabrigada numa enchente que a derrota não passa de um erro de interpretação.

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Lúcia Guimarães é colunista do Estado de S.Paulo, em Nova York