Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os professores doutores

Nestes tempos de pletora de notícias, de vazamentos de dossiês à eventual re-reeleição presidencial, de assassinato e tortura de crianças, de incontáveis guerras ao redor do mundo, da campanha eleitoral norte-americana, de tantas outras coisas, um assunto como o que pretendo abordar aqui é, certamente, de menor importância; contudo, sem querer me impor como mentor de alguma coisa, julgo que o mesmo poderá ser útil a alguém, especialmente a jornalistas.

Na Folha de S.Paulo de quarta-feira (3/4), em sua coluna na página 2, Kenneth Maxwell abordou um assunto interessante, dando o nome a seu texto de ‘Doutores’. Resumidamente, ele cita que há um acirrado debate a respeito de quem pode e quem não pode usar o título de ‘doutor’, informando que a controvérsia teve início quando vários distintos pesquisadores norte-americanos com doutorados por universidades de grife, tais como Cornell e o Caltech, foram recrutados pelo prestigiado Instituto Max Plank da Alemanha; até aí, nada de especial teria o fato, a não ser que, a pedido do Ministério da Educação da Turíngia, os mesmos se tornaram alvos de acusações criminais, justamente por utilizarem o título ‘doutor’, a que não teriam direito sob as leis da Alemanha.

A condenação por esse crime é de até um ano de prisão e se baseia em uma lei de 1939, dos tempos do regime nazista e ainda em vigor, que restringe o título de doutor apenas aos alemães! Houve uma atualização da dita lei em 2001, ele nos conta, estendendo o privilégio do uso do título não apenas aos alemães, mas aos demais cidadãos da União Européia, mas que não vale para norte-americanos ou cidadãos de outros países do mundo, cujos doutorados não são reconhecidos na Alemanha.

Basta usar gravata…

Interessantemente, se prestarmos atenção à ópera Tannhäuser, de Richard Wagner, veremos que o personagem central da mesma é condenado pelos castos nobres cantores da própria Turíngia, pois ele teria sido atraído por ninguém menos que Vênus a seu mundo em outra dimensão (?),o Venusberg, e, arrependido, teria ido como peregrino pedir o perdão ao papa, em Roma, que, dada a gravidade do caso, não o concedeu: rígidos mesmos esses teutônicos, não é mesmo?

Maxwell também nos conta que o uso do ‘doutor’ nos EUA é relativamente recente, e seu uso público teria se iniciado e ampliado com o ‘Dr. Kissinger’, seguido das ‘Dras.’ Allbright e Rice, e que o título ‘professor’ não tem muito status por lá, sendo mais honroso o ‘doutor’ mesmo. E termina de modo curioso: caso alguém queira que Kissinger preste contas aos defensores dos direitos humanos, basta que o mesmo pise na Alemanha e ostente o seu real título de doutor, ou PhD, efetivamente obtido na Universidade Harvard, para que o estado da Turíngia proponha uma ação criminal contra ele pelo uso do título de ‘doutor’. Não deixa de ser uma idéia para o juiz Baltazar Garzón, mesmo na Espanha…

Pois muito bem, cá em terras brasileiras basta alguém usar gravata que já é chamado de doutor. Contudo,voltando ao mundo acadêmico, nosso modo de titularidade possui particularidades que merecem alguma atenção.Por exemplo, quantos não se espantaram quando da agonia de Tancredo Neves no Incor vários de seus médicos exigiam ser tratados como ‘Prof. Dr.’? Ou ainda o caso daquele juiz carioca que conseguiu que um desembargador obrigasse os moradores e funcionários de seu condomínio a tratá-lo igualmente como ‘doutor’, ‘excelência’, ou coisa que o valha, liminar felizmente derrubada pelo pleno do Tribunal de Justiça do Rio?

O exemplo de Einstein

Deve-se dizer que chamar médicos de ‘doutor’ é costume em muitos lugares do mundo, mesmo que a dita pessoa não possua o PhD verdadeiro. Nos EUA, por exemplo, a graduação em medicina confere ao formando o título de M.D., que seria medical doctor, não equivalente ao PhD. O advogado, ou counsellor, obtém o seu L.D., ou law doctor, similarmente. No Brasil, há uma lei, acreditem, que autoriza o advogado a ser chamado de ‘doutor’, mesmo que não o seja…

Importamos muita coisa da Europa até o fim da Segunda Guerra. Um dos itens foi a titulação: inicialmente, as universidades brasileiras concediam o título de doutor a qualquer um que se formasse; com a proclamação da República, o título automático de doutor limitou-se a médicos e advogados. Alguns anos depois, o diploma apenas daria o grau de ‘médico’, por exemplo, a um bacharelado em medicina. Mas bastava o dito médico ter uma idéia e, sem orientador algum, escrever uma tese e apresentar a mesma perante uma banca de cinco doutores que, se aprovada, lhe garantiria o almejado título de doutor.

Mas isso não bastou para nossa cultura, parte importada, parte tupiniquim: na Europa, havia a concessão da chamada venia docendi, ou livre-docência, um concurso público que exige a apresentação de uma nova tese, prova escrita, prova oral e didática, currículo ou memorial e prova prática (uma cirurgia, por exemplo), para que se obtenha esse grau acadêmico, que aí, sim, tornaria o indivíduo apto a ser denominado ‘Prof. Dr.’ mesmo que não ministrasse aula alguma em lugar algum. Em países como Alemanha, Áustria e Suíça, o livre-docente, o privat dozent, servia para que alguém pudesse ser tido como apto a lecionar em uma dada instituição, contudo sem pertencer ao corpo docente, pois sendo os cargos vitalícios, não haveria vagas para todos. Um exemplo famoso é o de Albert Einstein, que almejou ser professor do Instituto Tecnológico de Zurique: como não haviam vagas, ele prestou o concurso e se tornou livre-docente do mesmo, uma espécie de professor extranumerário e não remunerado, mas dizendo o título que ele teria todas as condições para ser professor ali.

Por que a titulação?

A Itália também usou a livre-docência e, nos dias de hoje, na Alemanha, algumas universidades ainda o utilizam, mas como parte da carreira acadêmica: há o chefe, o catedrático, e abaixo dele uns dois livre-docentes, na estrutura piramidal da dita carreira. Os mesmos costumam apresentar-se como ‘Prof. Priv. Doz.’ e os chefes mesmo como ‘Prof. Dr. Med.’.

Aqui no Brasil as coisas mudaram na década de 1970, quando se iniciaram os cursos de pós-graduação à moda norte-americana, conferindo os títulos de mestre e/ou doutor, teoricamente servindo o primeiro àqueles que quisessem lecionar e o segundo aos pesquisadores. Após o doutorado há o pós-doutorado, como nos EUA, e a livre-docência desapareceu das universidades federais, embora as estaduais paulistas sempre a tivessem mantido. Nos anos 1980, as federais retomaram a livre-docência e, como nas estaduais paulistas, passou a ser um requisito fundamental para alguém se candidatar ao cargo de professor titular, o mais alto na carreira acadêmica. Curiosamente, há locais em que só se pode concorrer à livre-docência já possuindo um doutorado, e outros em que o título de doutor é conferido juntamente com o de livre-docente, com a defesa de uma única tese.

Quem teve paciência de ler até aqui, deve estar se perguntando: mas, e eu com a Light (expressão antiga, essa, não é mesmo?)? Realmente, o mundo não vai parar por causa desse trepidante assunto. Mas como sofremos de uma baixa-estima como nação, concordo com um antigo professor de que já que não temos mais títulos nobiliárquicos e não poderemos ser agraciados com um de conde, barão ou coisa que o valha, o ‘Prof. Dr.’, seja pela livre-docência, seja pelo mestrado/doutorado, passou a ser uma solução… Mas certamente alguém já percebeu: mas esse cara usa o título de mestre em Neurologia! Explico: logo após minha residência médica, abracei a carreira universitária e lecionei em vários lugares: concluí o mestrado, obtive os créditos para o doutorado e até iniciei a tese para o mesmo, mas acabei tomando um rumo mais para o lado assistencial da medicina. E por que utilizou ainda essa titulação? Quem disse que sou perfeito? Se a rainha Elisabeth me tornar Cavalheiro do Império Britânico, talvez eu troque o mesmo para Sir

O lecturer e o maître de conférences

Para finalizar, um exemplo de como tudo isso pode ser banal e ridículo, uma luta de egos mesmo. Quando eu era conselheiro do CRM, um caso bastante estranho chegou à instituição e fui encarregado do mesmo: um médico estava denunciando outro por uso indevido do título de ‘Prof. Dr.’ que ele colocava nos receituários!

Analisando a coisa, o denunciante possuía o doutorado e estava preparando sua tese de livre-docência naquela época, mas já era professor titular de uma instituição particular. O denunciado (não por coincidência, concorrente seu na especialidade), nunca obteve um título universitário, mas efetivamente dava aulas em uma faculdade, porém não de medicina. Ora, graças a toda essa confusão, as faculdades, na dúvida e para não melindrar alguém, denominam todos os membros de seu corpo docente de ‘Prof.’, aqui valorizado mais que nos EUA, como vimos, e freqüentemente de ‘Prof.Dr.’. Analisando a coisa com mais detalhes, sem dúvida o médico que denunciava poderia ser chamado de ‘Prof. Dr.’, pois possuía ao menos o doutorado na época e era professor titular. Mas o denunciado, embora sem títulos, exercia a função de professor de fato e, ainda mais, naquele tempo por um tempo vigorou uma resolução que obrigava a todo professor universitário a se registrar como tal no Ministério do Trabalho, como os jornalistas. Concluindo, para todos os fins, mesmo que talvez de modo um pouco malandro, ele também fazia jus ao uso do ‘Prof. Dr.’…

E a coisa não pára por aí: o lecturer da Harvard ou de Oxford, ou o maître de conférences da Sorbonne não seriam equivalentes ao livre-docente, ao ‘Prof. Dr.’ ou coisa que o valha? Deixo aos pacientes leitores desse importantíssimo assunto suas próprias conclusões, mas ao menos espero ter ajudado profissionais de imprensa nesse quesito.

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Médico, mestre em Neurologia pela Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo