Manter a conversa clara e o trato justo, mesmo nas democracias, é tarefa cheia de sutis complexidades.
O rei espanhol não tinha o direito de se dirigir daquele modo a um chefe de Estado de país soberano. O que vale para José María Aznar deve valer também para Hugo Chávez. Um foi eleito pelos espanhóis, outro pelos venezuelanos.
Assim como Hugo Chávez exagerou nas críticas a Aznar – não pelo conteúdo, irrepreensível, mas pela forma e local escolhidos para a crítica – Zapatero mostrou que pôde criticar Hugo Chávez, mas não pôde fazer o mesmo com o rei espanhol.
A conclusão que tira o habitante da Galáxia Gutenberg é que os três erraram feio. Chávez falou demais. Zapatero o repreendeu. O rei meteu-se onde não tinha sido chamado. Os três perderam a oportunidade do silêncio. Pois o silêncio também fala, também diz, às vezes com mais eficiência do que as palavras.
O que pensa quem vota
Já os investimentos da Espanha na América Latina – que na verdade é o que realmente interessa, pois as cúpulas políticas destinam-se a arrumar os negócios – melhoraram sensivelmente a vida dos cidadãos. Lá e cá. Investidores espanhóis estão ganhando muito nos negócios que fazem com brasileiros e hispano-americanos. Mas o bom negócio é justamente aquele que satisfaz as duas partes. Quando o Estado estava no lugar desses investidores, o contribuinte pagava do mesmo modo, mas não tinha o serviço.
É melhor ter os bancos seguindo as regras do mercado do que seguindo as regras políticas, ainda piores do que as do mercado, pois essas não podem acolher os milhares de empregos dependurados por acordos partidários.
É melhor passar numa loja, comprar um celular e sair falando com ele do que depender de uma fila para sua aquisição, com o processo de aquisição manobrado por políticos que criariam dificuldades para vender facilidades.
É melhor pagar agora pequena taxa por um telefone do que pagar cerca de 2 mil dólares a particulares, como se fazia antes, que não deviam satisfação a ninguém, muito menos ao Estado, que sequer coibia os excessos.
É melhor pagar pedágio e ter boas estradas do que pagar do mesmo modo e não tê-las nunca.
É nisso que pensa quem vota nas democracias: é melhor ou pior para a vida dos cidadãos eleger este ou aquele candidato? É só dar uma olhada em como andam as estradas onde o pedágio ainda não chegou.
Um protegido de Franco
Todas essas reflexões poderiam ser antecedidas de um estratégico ‘se’. Se o Estado funciona bem, ah, sim, daí não existe coisa melhor porque teoricamente predominaria o interesse público.
O Brasil vive questões complexas. A nação andou melhor com o ditador Getúlio Vargas, que praticamente fundou o Estado brasileiro depois de uma vitória pelas armas, do que sob a batuta de presidentes eleitos. Mas como o povo respondeu depois? Elegendo o ditador que se submeteu a eleições livres.
A democracia não é um valor soberano para nações ditas democráticas. Os EUA, a nação mais democrática do mundo, sustentaram ditaduras terríveis, sobretudo na América Latina e especialmente no Brasil. Aquilo que era bom para os norte-americanos não era bom para os outros.
A Espanha somente alcançou a democracia no século passado depois de muitas lutas e de um preço alto que pagou pelo esquecimento de certos passados de altas figuras. O rei espanhol foi dileto protegido do ditador Francisco Franco. Jamais terá gritado para o ditador que se impôs ao povo espanhol pelas armas o que gritou para um chefe de Estado que chegou ao poder pelo voto… depois de fracassar na tentativa de chegar pelas armas.
CPMF não dá para sonegar
Quem se dá conta do surrealismo de nossa vida política, não apenas de nossa vida literária, não se surpreenderá se algum dia o povo eleger um ditador. O povo confia cada vez menos nas instituições ditas democráticas. E a pergunta que não cala é: o que elas estão fazendo ou deixando de fazer para que o povo chegue a esse ponto?
Qual é a saída? Não é uma só. Mas entre todas as saídas necessárias, uma é essencial: educar o soberano.
Quando a Inglaterra adotou eleições, um membro do Parlamento fez uma intervenção inesquecível: era preciso, dali por diante, educar o soberano. Não se tratava mais de educar este ou aquele príncipe, esta ou aquela princesa, mas o povo, o novo soberano.
A mídia oferece todos os dias reiterados exemplos de como o povo é temido. Por quê? Se aprovada a reeleição, o temor é a má escolha ou a escolha certa?
Algumas questões parecem ser mal formuladas de propósito, como estratégia. Querem um exemplo para fechar esta coluna?
Enquanto se discutia a censura que o rei impôs, deu-se um diálogo que merecia substituí-la nas manchetes. Foi travado entre o médico e ex-ministro Adib Jatene, a favor da CPMF, e Paulo Skaf, presidente da Fiesp, contra.
Pergunta Jatene: ‘Por que vocês não combatem o Cofins, que tem alíquota de 9% e arrecada 100 bilhões de reais?’ Responde Skaf: ‘O Cofins não está em pauta. O que está em discussão é a CPMF.’ E Jatene, terminando a discussão: ‘É que a CPMF não dá para sonegar.’
A luta pela derrubada da CPMF é porque o imposto afeta a todos. É um pouco torto, mas democrático… Se afetasse somente o povo, seria aprovado rapidinho. Nem sequer se pensa em alíquotas diferenciadas para pobres e ricaços. Dir-se-á que o percentual já democratiza. Uma ova! Um por cento de um salário mínimo significa menos comida na mesa; 1% de grandes fortunas não faz ninguém passar fome.
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Doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é vice-reitor de pesquisa e pós-graduação e coordenador de Letras; seus livros mais recentes são Os Segredos do Baú (Peirópolis) e A Língua Nossa de Cada Dia (Novo Século)