Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Outra pandemia: culpar a mídia

Veloz, solerte, letal. Cometido o delito, antes mesmo de esboçar uma estratégia de defesa, os denunciados e encurralados estão aprendendo a servir-se de um recurso mais moderno do que a velha máscara da inocência: acusam a imprensa.


Consideram mais eficaz desqualificar os meios de comunicação num mundo cada vez mais dependente deles do que rebater acusações. O bode expiatório antimidiático está sendo utilizado neste momento em diferentes quadrantes e a mesma intensidade: no Brasil o agente viral é o senador José Sarney e seu dileto advogado de defesa, o presidente Lula, ambos empenhados em minimizar o turbilhão de escândalos que envolve há cinco meses a figura do ex-presidente da República e tripresidente da Câmara Alta.


No Irã, são os aiatolás que não reconhecem a fraude a favor do seu candidato Mahmoud Ahmadinejad e culpam a imprensa internacional pela rebelião popular que tomou conta das ruas de Teerã. Na Itália, flagrado numa bacanal, o primeiro-ministro Silvio Berlusconi acusa a mídia européia de esquerdista e conspirar para derrubá-lo.


Desgastado pelo fracasso do socialismo bolivariano, o venezuelano Hugo Chávez tenta liquidar o que restou da imprensa livre no seu país, especialmente a emissora Globovisión. E na Argentina, assustada com um possível avanço da oposição nas eleições legislativas de domingo (28/6), a dupla presidencial Kirchner ameaça enviar ao Congresso o projeto de uma nova lei de audiovisual.


Mimos aos congressistas


Os afetados pela pandemia exibem sintomas comuns – abominam a alternância no poder, só gostam da democracia quando as urnas lhes são simpáticas, só lêem jornais que os elogiam. As diferenças não são apenas geográficas. Algumas vítimas do furor antimídia são eles próprios barões da mídia. Caso de Berlusconi, que além de controlar os canais estatais da Itália é dono de um poderoso conglomerado multimídia que o torna virtual senhor da opinião pública.


Quando se sentiu obrigado a defender-se publicamente, Sarney foi à tribuna do Senado para atacar ‘grupos econômicos e a mídia radical’. A precária acusação não faz justiça ao notório saber do político maranhense. Grupos econômicos jamais se aliariam à mídia radical. Quem o fustiga, mais encarniçado, é o Estado de S.Paulo, seguido do Globo, ambos mais conservadores do que extremados. Mesmo a Folha de S.Paulo (onde o imortal romancista publica há duas décadas suas platitudes semanais), não cabe no figurino do irredentismo.


Sarney goza de um poderoso salvo-conduto midiático: quando envergou a faixa presidencial, depois da tragédia que se abateu sobre Tancredo Neves, tentou obsessivamente acrescentar mais um ano ao seu mandato. Para isso, encarregou o então ministro das Comunicações Antonio Carlos Magalhães de fazer uma farta distribuição de mimos aos congressistas. Assim nasceu a aberração que desqualifica tanto o Congresso como nossa mídia eletrônica ao converter quase duas centenas de parlamentares em concessionários de canais de rádio e TV. Seriam eles os radicais que o atazanam?


Vacina infalível


Dono de um conglomerado de mídia no seu estado, além de colunista da Folha, Sarney já tentou usar o jornalismo para alavancar a carreira política. Em 1962, algum radical descobriu a manobra e demitiu-o do cargo de correspondente do Jornal do Brasil em São Luis (MA).


Imperioso reconhecer que a mídia contemporânea enfrenta em diferentes esferas sérios problemas existenciais que a fragilizam e a tornam vulnerável aos surtos viróticos. A pandemia antimidiática não grassa em ambientes arejados, pluralistas, onde o jornalismo, além de profissão é também encarado como missão. Vacina infalível para qualquer pandemia autoritária.