Essa questão do emprego de energia nuclear no Irã poderá curiosamente prestar serviço ao governo Lula. Isto se a grande imprensa conservadora brasileira dispuser-se a uma análise cuidadosa dos papéis diplomáticos sendo desempenhados e de alguns contextos históricos. Noticia-se que o Itamaraty não acompanhou o voto de Hugo Chávez nesta questão atômica e assim será possível desmontar a idéia de que Lula é uma versão verde e amarela do populista venezuelano.
Descobriu-se em 2003 que Teerã vinha há 19 anos enriquecendo urânio e violando o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares de que é signatária. O segundo exportador mundial de petróleo, com o barril acima de US$ 50, situado no coração do inflamável Oriente Médio, é uma grave fonte de preocupação. Os europeus e americanos querem levar o Irã ao Conselho de Segurança da ONU. E o Brasil votou a favor da moção, ao contrário da Venezuela.
Mas o ministro Celso Amorim não acompanhará um corolário da moção: a imposição de medidas punitivas ao Irã. O governo Lula trabalha pela restauração da credibilidade da república muçulmana. Que daqui para a frente Teerã respeite as regras internacionais sobre a informação de seu programa nuclear e assegure inspeções da Aiea em suas usinas. Moscou passaria a processar o yellow cake iraniano, a Rússia tornando-se o fiel da balança na questão. Não se trata de ingenuidade, é antes questão de serenidade e reconhecimento de que soluções à la Mister Rumsfeld não resolvem.
Atrás da diversificação
A mentira iraniana quanto ao tratado de armas nucleares afinal não é mais vil do que a política externa americana que, como bem lembra o diplomata sueco Hans Blix, ex-diretor da Aiea, derrubou o único governo democrático no Irã para ungir ali a tirania do xá Reza Pahlevi. No Oriente Médio não há solução simples, sigamos conversando.
É falsa a identificação que se faz na imprensa de Lula com Hugo Chávez. Naturalmente seus papéis não são estáticos e é preciso colaboração da elite brasileira, que evitemos rótulos alarmados sobre as pessoas, que o país não tente Lula com o populismo. Lula e Chávez são lideranças que representam sociedades gestadas em circunstâncias claramente distintas. O Brasil de 1822 já tinha Legislativo e Judiciário, aqui uma monarquia estável evitou sobre o território de dimensões continentais a fragmentação das caudilhescas nações vizinhas.
Se não nos tivéssemos livrado da condição da monocultura do café seríamos hoje bem mais parecidos com a Venezuela, inclusive na questão das lideranças. O Brasil a partir da crise de 1930 foi atrás de uma economia diversificada. Nossa exportação, por exemplo, hoje vai do agronegócio aos jatos passando por automóveis e minérios. A Venezuela, como é comum em países da Opep, é uma economia massacrantemente extrativa, terra fértil para lideranças populistas. Pois ali se convidam algumas das sete irmãs petrolíferas, fura-se e jorram divisas. A economia monotemática reflete-se nas relações sociais, na formação menos politizada do povo.
Prova de serenidade
Não parece haver dúvida de que o jornal O Estado de S. Paulo é a imprensa conservadora mais bem estruturada no Brasil. Genuínas convicções democráticas republicanas, muitos jornalistas e colaboradores de primeira grandeza e independência financeira dada por receitas de publicidade fartas garantem sua linha editorial honesta e dona de personalidade própria nesses 130 anos de publicação. Honesta, mas não imune a ideologia.
É em nome destes valores que se poderia esperar que o Estadão, pondo de lado sua implicância anti-Lula, já houvesse identificado pelo menos uma segunda linha louvável de atuação do governo federal. A primeira linha, para ficar apenas no dizer dos conservadores, vê como único mérito da administração petista o guardar a política econômica introduzida pelos tucanos. Como quem tal alega não se dá ao trabalho de avaliar a competência necessária a um líder sindical para que controle as alas radicais de seu partido, a ponto de respeitar a economia de mercado num país com os contrastes da distribuição de renda brasileira, o país sobra a falar de macaqueação. Mas isto é outra questão.
Hoje basta-nos apontar esta segunda linha de atuação do governo Lula capaz de agradar aos conservadores. E agradar não por capricho, mas por consistência em si, pela prova de serenidade que oferece. ‘Corrida Nuclear. O Brasil deve votar contra Irã na Aiea’, estampa a página A12 do Estadão de 3/2/06. Tal posicionamento já deveria refletir-se nos editoriais sempre veementes à pág. 3.
Dê-se a César o que é de César.
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Diretor de ONG, Bahia