Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Para inglês ver

Ainda menino, sonhava em entrar para o Guinness Book. Não sabia como. O jeito não importava. Só queria estar entre as maiores realizações de todos os tempos. Que chique! Quem sabe o garoto mais esperto do universo? Ou o mais ingênuo? O que aprendeu a cantar mais rápido as músicas do Balão Mágico? O Guinness era tão legal. Os maiores recordes da história são atualizados anualmente no livrão, que já teve sua relevância. Hoje, resume-se a um amontoado de bobagens, sem poder de conferir credibilidade. Sinal dos tempos.

Está nos jornais: a cantora britânica Adele acaba de quebrar o recorde que era de Madonna, ao emplacar por mais de dez semanas no topo das paradas inglesas o CD “21”. O álbum é ótimo. O hit “Rolling in the Deep”, primeiro lugar em diversos países, é uma gota de alívio, talento e sensibilidade no mar eletrônico e sem sal dominado pelas princesas do pop. Mas quem é Adele? Com todo o respeito, ela está longe de ser mais do que uma excelente vocalista. E seu recorde, literalmente para inglês ver, não muda isso. Britney Spears é mais popular e também não saiu imune ao choque de realidade. Sentiu o gostinho de subir e descer mais rápido do que gostaria nesse estranho mundo dos recordes da era digital. O primeiro single de seu novo disco, “Hold It Against Me”, foi alardeado pela mídia como o mais executado em um único dia nas rádios americanas, feito suplantado na semana seguinte, com larga vantagem, por “Born This Way”, de Lady Gaga – até que venha a próxima música, sei lá de quem, na crista da onda.

O artista precisava ser artista

Gaga, aliás, vive em pé de guerra com Justin Bieber no Twitter, disputando seguidores. Como se isso tivesse algum valor. Bieber, que ainda goza de seus 15 minutos de fama, está ganhando, por enquanto. Assim como no YouTube, onde já foi visto milhões de vezes mais que a concorrente tresloucada. Amanhã, tudo pode mudar. Afinal, quem é Justin Bieber, além de um garoto sortudo que, no ano que vem, já vai estar trancado na memória constrangida das adolescentes que cresceram? Rihanna, aquela que levou uns tapas do Chris Brown, é outra vítima do falso êxito. Ela tem um monte de músicas no top 10 que ninguém sabe cantar. Culpa dos downloads. A cada duas semanas, a moça lança um clipe, com medo de cair no esquecimento. O fato é que depois de “Umbrella”, seu único acerto, a bonita não fez mais nada digno. Mesmo assim, Rihanna estampa a capa de um monte de revistas e tem umas nove músicas entre as mais pedidas. Deveria ser o supra-sumo do momento. Não é. Na verdade, a turnê da cantora de cabelos em chamas está prestes a ser cancelada por causa da fraca procura por ingressos. Quem quer ver Rihanna e seus recordes? Qual é a grande notícia afinal? Os feitos instantâneos ou suas consequências maléficas? Mais um exemplo de que o sucesso ficou relativo está na TV, com a série teen Glee, que baseia seus episódios em obras de artistas famosos. Espertos, os produtores lançaram vários CDs com as regravações e, mais rápido que a luz, conseguiram quebrar um dos recordes consolidados por ninguém menos que Elvis Presley, notícia dada com fanfarra por alguns dos principais portais.

O que ninguém noticia é que, em alguns anos, Glee terá deixado de existir, o que é natural para um programa com seu público-alvo. O elenco já terá sido esquecido com força. Elvis, com ou sem recordes, continuará sendo Elvis. Para sempre. Mesmo porque, para conseguir vender milhões de discos, era preciso disponibilizar as bolachas de vinil nas lojas. As músicas precisavam ser realmente boas. E o artista, bem, precisava ser artista. Hoje, basta um clique, sem compromisso com o bom senso e o bom gosto.

O joio e o trigo

Por sua vez, a pirataria achatou as metas. Antes, disco bem sucedido era aquele que vendia mais de 10 milhões de cópias. Agora, quem conseguir um terço disso bate palmas. Mais uma vez, sinal dos tempos. No cinema, não é diferente. Avatar, aquela bobagem em 3D de James Cameron, é o atual recorde de bilheteria. Está no Guinness. Mais de dois bilhões de dólares em ingressos vendidos. Graças ao marketing cansativo, e não necessariamente aos méritos cinematográficos. A economia também conta. Desde que os campeões em arrecadação começaram a ser listados, no começo do século passado, o preço da entrada subiu, e muito. As salas de projeção se multiplicaram e se modernizaram. Os filmes compensaram a perda de qualidade com gracinhas tecnológicas. A população cresceu. O público pagante também. E não havia nem sombra do 3D.

Se, na semana que vem, o próximo pornô da Rita Cadillac bater Cameron, não ficarei surpreso. Ainda que seja a chamada de um grande jornal. O Guinness, enfim, deixou de ser literatura curiosa para se transformar em inutilidade. O absolutismo dos grandes feitos e tempos cedeu lugar ao relativismo e à volatilidade dos dias que correm. A capa é melhor que o conteúdo, como quase tudo na vida. Quem mascou mais chicletes, o beijo mais longo, quem passou mais frio, quem vendeu mais em menos tempo, se Faustão bateu Gugu, blá-blá-blá, está tudo lá, naquele livrão glamouroso, antes meu poço de de fantasias e curiosidades, hoje uma sonora e breve piada. O Guinness ficou chato. As edições podem se tornar obsoletas em cinco minutos. Em tempos de sucesso mágico e excesso de informação, com a internet consolidada como a porta para a existência, tudo parece ter perdido o sentido. Quem se importa quando todo mundo pode qualquer coisa a qualquer momento? O fato é que nunca foi tão necessário separar o joio do trigo, tarefa para raros. Adele, querida, bata quantos recordes quiser e puder. Desde que continue assim, boa. Você, definitivamente, é trigo. E as notícias e os números, estejam no Guinness ou não, têm pouco ou nada a ver com isso.

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Jornalista, Ribeirão Preto, SP