Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Para muitos, ele era o cara

Posso dizer que dei sorte na vida, porque sempre encontrei pessoas generosas que me ajudaram. Não consigo imaginar que rumo teria tomado se não as tivesse conhecido. Por exemplo, se Lucy Teixeira, lá em São Luís do Maranhão, não me houvesse incentivado a vir para o Rio, teria vindo? E, se tivesse vindo, mas sem ter me tornado amigo de Mário Pedrosa, Ivan Serpa, Lygia, Amílcar, Palatnik? A vida é feita também de acasos, pode tomar um rumo ou outro, dependendo de fatores circunstanciais.

Lucy apresentou-me a Otto Lara Rezende, que me admitiria na revista Manchete, onde havia ótimos profissionais com os quais muito aprendi. No Diário Carioca, para onde fui em seguida, assimilei o modo novo de escrever a notícia. E lá estavam Carlos Castelo Branco, Evandro, Tinhorão, entre outros, e, especialmente, Prudente de Moraes, Neto, que era o chefe da Redação.

A Redação do Diário Carioca foi o lugar mais divertido em que já trabalhei. Já falei disso em outra ocasião: o jornal funcionava na sobreloja de um prédio na avenida Rio Branco, quase esquina com a praça Mauá, onde está o edifício em que ficava o jornal A Noite e também os estúdios da Rádio Nacional. Era o ano de 1956, quando o rádio ainda mantinha enorme popularidade.

Nas tardes de domingo, as fãs de Emilinha e Marlene saíam do auditório da Nacional, gritando o nome das cantoras. Tinhorão, debruçado à janela da Redação, as provocava: ‘Macacas! Macacas de auditório!’. Elas respondiam com palavrões. Prudente, de pé no meio da Redação, ria às gargalhadas.

Conversação em código

Esse era o ambiente do jornal, consentido e estimulado por ele, que também se divertia com as peças que alguns pregavam aos outros, atirando-lhes bolas de papel ou passando-lhes trotes com falsos telefonemas. Lembro-me de um desses trotes, cuja vítima foi Tinhorão, que tinha fama de namorador. Um dos colegas, imitando voz de mulher, marcou um encontro com ele aquela noite mesmo, na Cinelândia.

Imediatamente vestiu o paletó, foi até Prudente e inventou que sua mãe o chamara, aflita, pelo telefone. Mal saiu da Redação, Prudente e o autor do trote começaram a rir, logo seguidos pelos demais. Uma meia hora depois, voltava Tinhorão, sorrindo amarelo, encabulado por ter bancado o bobo.

Do Diário Carioca, fui para o Jornal do Brasil, onde fiquei até 1962, quando fui demitido por ter aderido à greve dos jornalistas. Logo, recebi um recado de Prudente de Moraes, Neto, que então chefiava a sucursal de O Estado de S. Paulo no Rio. Ali, se o ambiente não era o mesmo do Diário Carioca, também reinava o bom humor e a camaradagem. Ganhei muitos amigos, Mário Cunha e Villas-Boas Corrêa, e me divertia com as piadas de Guaxito, teletipista do jornal. Ele punha apelido nos companheiros e gozava a todos. Quando alguém falava alto demais ao telefone, ele os sacaneava: ‘Avisa o coleguinha aí que já inventaram o telefone!’.

Durante 1963, as tensões políticas e a agitação social já anunciavam o golpe militar. Prudente, em seus artigos, pregava a derrubada de Jango, mas tratava com carinho os esquerdistas da Redação. Assim foi que, no começo do ano seguinte, quando finalmente os generais consumaram o golpe, Prudente nos aconselhou a sumir. Eu e Mário Cunha sumimos, mas, de vez em quando, telefonávamos para ele, que nos falava em código: ‘O tempo continua nublado, ameaçando chuva’, avisava ele. Quando, algumas semanas depois, o tempo melhorou, nós voltamos ao trabalho.

Ao pé do ouvido

Prudente era uma personalidade pouco comum. Quando jovem, fundara, com Sérgio Buarque de Holanda, a revista Estética, que difundia as ideias modernistas. Ensaísta brilhante, tinha uma visão muito própria das questões estéticas e literárias. Foi também poeta, embora de sua poesia pouco se conheça, além do célebre poema ‘A Cachorra’, que Manuel Bandeira incluiu na sua antologia dos poetas bissextos. ‘Sorriu da minha tolice/ eu sou a Cachorra, disse/ Tu me chamaste, aqui estou.’

Em 1975, eleito presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), ele, que apoiara o golpe militar e já se tornara um de seus mais firmes opositores, liderou a luta dos jornalistas contra a censura. Essa firmeza e determinação exasperaram de tal modo os militares que chegaram a destruir, com uma bomba, o sétimo andar do edifício-sede da instituição.

Prudente morreu em dezembro de 1977. A última vez que estive com ele foi em sua casa, em Ipanema, quando um grupo de amigos o homenageou. Ao despedir-me, segredei-lhe ao ouvido: ‘Você é o melhor ser humano que conheci em minha vida’. Ele me apertou o braço e sorriu entre encabulado e agradecido.

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Jornalista e escritor