Em artigo publicado na Folha de S.Paulo (‘A conspiração’, 16/12/04, pág. A 2), assinado pelo sociólogo Demétrio Magnoli, articulista semanal do jornal, o autor, a pretexto de combater as verdadeiras sandices que, sob a rubrica de ‘teoria da conspiração’, proliferam, por outro lado incorre na perigosa armadilha na qual a autonomia de pensamento se torna refém das ‘verdades oficiais’.
Prudente talvez seja, sem aqui entrar propriamente num debate com o articulista, compreender-se a existência de duas vertentes que, em comum, têm apenas o fato de refutarem a ‘verdade oficial’. No mais, em tudo, se separam.
O que é construção de mentes delirantes não se confunde com pensamentos prospectivos. Para estes, são indispensáveis atributos gnosiológicos que integram a análise, a crítica, a interpretação e, enfim, tudo que é demandado pela inteligência.
Num aspecto, o artigo de Magnoli reúne virtude: a possibilidade de outras angulações para a tentativa de entendimento acerca do que envolve o sentido mais profundo de ‘conspiração’. Para tanto, convém não se desprezar a origem do conceito cuja raiz se encontra no limiar da civilização.
A ‘conspiração’ diz respeito ao campo da ‘verdade encoberta’, expressão cunhada por Nietzsche. A rigor, o ‘pensar conspiratório’, entendido como ‘estado de mentação’, voltado para o exercício analítico, formula o que podemos nomear de ‘teoria co-inspiratória’. É, na verdade, uma situação perceptiva, instigada (ou ‘inspirada’) pela suspeita, pela dúvida acerca de algo posto como definitivo. Sob esse prisma, é a manifestação pura de um esforço de inteligência, a partir do momento em que um duelo é travado entre a verdade e o mistério.
A origem das religiões tem a ver com esse embate, que também habitava o mundo pagão, sobretudo quanto ao sentido de ‘destino’. A noção em torno da existência de um ‘arquiteto do universo’, onisciente e onipresente, mas invisível e intangível, resvala nessa dimensão ‘co-inspiratória’.
O olhar não se conforma com o que lhe é dado a ver. Há, portanto, nas construções ‘co-inspiratórias’ – descartadas as elaborações mirabolantes que não passam de devaneios destituídos de mínima sustentação crítica – algo de belo, ao colocar em evidência a capacidade da inteligência reativa contra as forças estruturadoras do poder.
A mídia e o Estado conspiram?
Há, no artigo do sociólogo, omissão que aqui merece ser desfeita. Deve-se salientar que dois sistemas disseminam ‘fantasmagorias’. Refiro-me aos sistemas midiático e político, seja quando informam sem as devidas clareza e profundidade, seja quando segregam informações ou fatos. São inúmeros os casos que, alimentados pela mídia, multiplicam versões sobre acontecimentos impactantes e de perfil nebuloso.
A linha de documentários é pródiga na oferta, ora pondo em dúvida a morte de Hitler, ora sugerindo complô na morte de Marilyn Monroe, entre muitos outros. Reportagens igualmente engrossam as fileiras. Quantos não se recordam das inúmeras conjecturas publicadas pelos mais diversos veículos a respeito do acidente que redundou na morte da princesa Diana ou Juscelino Kubitschek? Em outras situações, é a própria ingenuidade da versão oficial que praticamente denuncia a existência de ‘verdade encoberta’ (ou acobertada), a exemplo do relatório da Comissão Warren sobre o assassinato do presidente John Kennedy.
O Estado moderno desenvolveu, sob a ilusória prática da ‘transparência’, mecanismos potencializadores da opacidade. A população, por acaso, é informada sobre os reais termos de acordos internacionais, afora minutas que aqui e ali são distribuídas? A população é informada a respeito do que as CPIs apuram? Mesmo quem as acompanha não tem acesso às chamadas ‘sessões reservadas’. Que dizer do montante de documentos secretos, espalhados pelo mundo, aos quais apenas têm acesso altas patentes governamentais? Que verdades incômodas conterão?
Ora, essa atmosfera não provém do imaginário individual. Ao contrário, são geradas por instâncias de poder. Nelas figuram o Estado e a mídia. Não se pode ter a ingenuidade de que somos informados sem deformações. O difícil é saber encontrar o equilíbrio entre o ‘vôo da imaginação’ e o recorte crítico-analítico. O que define a fronteira é a credibilidade da fonte, aliada ao discernimento exigido pela filtragem crítica.
Absurdos deslizam pelas páginas da Internet. Isto é inegável. Como ferramenta disponível, a internet tanto se presta para eficientes e rentáveis acessos quanto para abrigar o amplo leque da patologia humana, razão por que internet é ferramenta e não em si mesma uma fonte.
Sobre o 11 de Setembro, há uma avalanche de suposições bizarras. Todavia, não é em nome delas que se autoriza o fechamento de questão a envolver o ocorrido. É preciso lembrar que o relatório publicado sofreu inúmeras supressões.
No tocante ao jogo político empreendido pelo governo norte-americano, não podem ser desprezados estudos e reflexões que se encontram disponíveis em algumas obras. Citemos algumas delas: de Gore Vidal, Sonhando a guerra: sangue por petróleo e a junta Cheney-Bush (Editora Nova Fronteira, 2003); de Noam Chomsky, Contendo a democracia (Editora Record, 2003); de John W. Dean, Pior que Watergate: a presidência secreta de George W. Bush (Editora Francis, 2004); de Naomi Klein, Cercas e janelas: na linha de frente do debate sobre globalização (Record, 2003); de Peter Scowen, O livro negro dos Estados Unidos (Record, 2003); de Samantha Power, Genocídio: a retórica americana em questão (Companhia das Letras, 2004). A leitura atenta dessas obras permite a construção de um outro ‘olhar’.
Duas cenas
Formar conhecimento é um processo vagaroso e, por vezes, penoso mas não menos compensador. O perigo está na elucidação simplória e rápida. É nesse ponto que a mídia fraqueja. Ela atua no instantâneo e, passada a onda, deixa rastros para trás. Esses resíduos que depois não são revistos acabam se fixando na mente de receptores menos atentos e mais descompromissados com o conhecimento que formulam a atmosfera conspiratória na qual desfilam os devaneios do obscurantismo.
Conspirar contra a ‘conspiração’ (sem jogo de palavras) pode acarretar o progressivo fortalecimento de discursos autoritários, entronizando o ‘monopólio da verdade’. Se é correto reconhecer que a ‘construção conspiratória’ se origina de um impulso próprio daquele que busca adequar a realidade ao modelo de sua consciência – o que é deformante –, igualmente correto é identificar no exercício conjectural a recusa a imposições firmadas por paradigmas ideologizantes.
A mídia exerce forte papel nas duas cenas. Claro está que os caminhos se separam a partir de como se estruturam subjetividades. A um cientista social que prioriza a observação do encadeamento dos fatos pode faltar a percepção de tudo que transcende. Por sua vez, a um psicanalista, a um teórico da arte, a um filósofo pode ausentar-se o contato mais íntimo com o que é da ordem da manifestação do imanente. Daí que a prudência de cada passo do pensar não deve abdicar da desconfiança sobre o pensado.
Enfim, a face conspiratória da História é tão frágil quanto a adesão acrítica às verdades consolidadas. Será que, com tudo que já ocorreu, alguém ainda acredita no fato de a invasão do Iraque ter sido motivada por nobres princípios de preservação civilizatória? É provável que sim. Bem, cada qual se identifique com o que melhor lhe parecer. Afinal de contas, a democracia não se pode alimentar de exclusões.
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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha, Rio).