Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Para ser um especialista em educação

Que características deve ter alguém para ser um especialista em educação? Teoricamente, esse especialista tem autoridade para escrever sobre o tema, criticar, analisar, palestrar, oferecer sugestões práticas. É possível distinguir o especialista em questões educacionais daquele que emite opiniões mais ou menos oportunas?


A revista Veja propõe um tipo de especialista. É o que se autodeclara expert em educação pelo fato de ser especialista em economia. Na última edição (nº 2078) de Veja, Camila Pereira entrevista o norte-americano Eric Hanushek, cujos trabalhos inspiram outros dois economistas que escrevem sobre educação: Claudio de Moura Castro e Gustavo Ioschpe. (Os dois são autores de um estudo recente que difunde o pensamento representado por Hanushek.)


A tese defendida por esses economistas é a de que a qualidade da educação é o principal impulso da economia. Uma vez que o nosso nível educacional está baixo, conclui-se que o desenvolvimento do país corre sérios riscos. Pensando em termos econômicos, o principal ‘produtor’ de boas aulas é o professor. Portanto, deveria ser instaurado um ambiente competitivo, como nas grandes empresas, para que os bons docentes fossem incentivados com salários melhores e os maus, se não se corrigirem, devidamente afastados.


Lista de evasões


Analisada a situação desse ponto de vista, simplifica-se o problema e encontra-se a solução fácil, óbvia, científica! O resto são intuições, mitos esquerdistas, corporativismo dos sindicatos de professores, opiniões vazias (opiniões não alicerçadas em números), desconhecimento das práticas vitoriosas de países (tão parecidos com o Brasil…) como Finlândia e Coréia do Sul!


Outro tipo de especialista, que não escreve em revistas de grande circulação, seria o professor que está na sala de aula, que enfrenta as dificuldades reais e complexas da educação brasileira. Este docente muitas vezes concluiu a sua graduação em faculdades privadas, fez alguns cursos de aperfeiçoamento com sacrifício, talvez um mestrado, mas sempre aprende mais com a vivência do que com os livros.


Este especialista (para o qual o economista da educação há de reclamar o uso das aspas) depara com problemas concretos que interferem no aprendizado das crianças e jovens: o ambiente familiar (ou a falta de ambiente familiar) desses alunos, o lugar adverso em que vivem, a precariedade física de muitas escolas e o desânimo de alguns professores (há os que entregaram os pontos e, não raro, porque estão doentes).


Este especialista enfrenta, sobretudo, o que se costuma chamar de ‘sistema’, um conjunto de práticas impostas que os professores se vêem na obrigação de adotar, como na questão da aprovação de alunos sem condições de prosseguir… mas que precisam prosseguir de alguma forma, porque a fila anda… ou cresceria a indesejável lista das evasões.


Leituras de fácil digestão


Muitas cidades brasileiras, muitas capitais, registram altos índices de aprovação no Fundamental I (do 1º ao 4º ano, ou ao 5º, se já foi adotado o sistema de 9 anos), mas um número expressivo desses aprovados tem graves dificuldades para ler, escrever e realizar operações matemáticas. Todos os alunos vão para o Fundamental II (os 4 anos restantes, antes do ensino médio), e seus professores de língua portuguesa, matemática, história, geografia, ciências, inglês e educação artística vêem-se perante o grande dilema: ensinamos o conteúdo previsto para os alunos mais adiantados ou tentamos alfabetizar os mais atrasados?


Houve interesse (legítimo) em manter a criança e o jovem na escola, mas os especialistas, os professores, não foram consultados sobre a viabilidade do que se propunha, ou não foram auxiliados para fazer da progressão continuada um caminho de estudo, e não de mera aprovação.


Se aspas devem ser usadas contra algum tipo de pretenso especialista, ficariam reservadas para aqueles autores que se arvoram a dizer o que bem entendem sobre educação e, pior, com grande aceitação por parte dos professores. Não me cabe citar nomes, mesmo porque algum tipo de serviço motivacional esses autores oferecem. São auto-ajudistas. Assim como Paulo Coelho fez milhares de leitores brasileiros entrarem numa livraria pela primeira vez na vida, assim também muitos professores encontram nessas leituras de fácil digestão receitas e frases de estímulo para o seu cotidiano.


Espaço para o educacionista


Alimento que não encontram quando lêem textos de autores sérios, pesquisadores universitários brasileiros ou estrangeiros, verdadeiramente especialistas em educação, pedagogos, filósofos, sociólogos ou psicólogos, cuja linguagem lhes parece hermética: ‘epistemologia apriorista’, ‘angústia simbolizada’, ‘o imperativo categórico da instância escolar’ etc.


Tanto o auto-ajudista quanto o hermético mais atrapalham do que ajudam. O primeiro oferece paliativos. O segundo, afasta.


O desejável seria encontrar especialistas que reunissem as melhores características dos modelos mencionados nos parágrafos anteriores.


Um especialista com formação acadêmica que soubesse comunicar-se com o professor brasileiro. Sejamos realistas: a nossa formação inicial não permite a muitos docentes discutirem de maneira sofisticada… e talvez isso nem seja tão necessário. A melhor virtude do profissional do ensino é a sua dedicação e muitas vezes ele se deixa desvalorizar pelo poder público porque recebe algum tipo de remuneração afetiva no âmbito da sua comunidade.


Que o especialista especial não desprezasse os dados que a economia e a estatística nos entregam, contanto que saiba relativizá-los, dando à experiência prática um destaque que incomoda, e muito, os que vivem longe, bem longe, sonhando com a sala de aula finlandesa.


Que o educacionista, para usarmos uma palavra que o senador Cristovam Buarque gosta de repetir, seja um especialista realista e obtenha mais espaço na mídia. Quem sabe, até mesmo em alguma página da revista Veja.

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Doutor em Educação pela USP e escritor; www.perisse.com.br