Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

‘Parte da imprensa faz campanha contra os jogos’

Odir Cunha entende de Jogos Pan-americanos. Jornalista esportivo de larga experiência, trabalhou em vários veículos, sobretudo em jornais, revistas e emissoras de rádio, com destaque para os seus dez anos de Jornal da Tarde, diário em que deu início à sua carreira em fevereiro de 1977. Entre as homenagens que recebeu, figuram dois prêmios Esso, um deles conquistado em 1979, pela cobertura dos Jogos Pan-americanos de Porto Rico. Há alguns dias, lançou em São Paulo o seu nono livro, Heróis da América, a história completa dos Jogos Pan-americanos (Editora Planeta).


Nesta entrevista, Cunha demonstra inconformismo com o que classifica de ‘perseguição’ ou ‘campanha’ contra a realização do Pan no Brasil. Critica também os exageros de um outro pólo, que veria os Jogos com lentes cor-de-rosa. Tudo por razões comerciais: ‘A grande diferença está na cobertura das empresas que fazem parte das Organizações Globo – que detêm a exclusividade na cobertura do evento – e as outras: a primeira tende a ver apenas o lado positivo dos Jogos, enquanto a outra enxerga apenas o lado ruim…’


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Por que realizar o Pan é tão importante ?


Odir Cunha – O Pan é essencial para o desenvolvimento esportivo dos países americanos. Para as nações mais fortes, costuma ser a última escala antes da Olimpíada. Para as demais, que são a grande maioria dos 42 países americanos, é a própria Olimpíada – casos de Paraguai e Bolívia, que jamais conquistaram uma medalha de ouro no Pan. Para estes, os Jogos Olímpicos estão fora de sua realidade, são um sonho inatingível. Todo país que organiza uma edição dos Jogos Pan-americanos eleva o seu nível esportivo. Não sou eu quem diz isso, mas os especialistas americanos em esporte. Veja a conclusão a que chegou a jornalista Mireya Hinojosa Cabello, encarregada pelo Comitê Olímpico do Chile de pesquisar sobre a participação do Chile nos Jogos e escrever um livro [Historia de Los Juegos Panamericanos – Participación Chilena] a respeito:



‘Lamentablemente empañam [ofuscam] nuestra historia los desistimientos en 1975 y en 1987, trás haber asegurado para Santiago de Chile la condición de ciudad sede. Es sabido que cada país que ha organizado uno de estos certámenes ha elevado notoriamente su presencia en el medallero por el entusiasmo que provocan en la juventud y la difusión de diversas especialidades, aparte de la presencia significativa de lo mejor de los deportistas de América.’


Como Mireya diz, o Chile desistiu de organizar o Pan duas vezes. Até por conseqüência disso está atrás de Colômbia e Venezuela no quadro geral de medalhas, países que pela condição sócio-econômica deveria superar. Como se sabe, a Colômbia realizou a edição de 1971, em Cali, e a Venezuela a de 1983, em Caracas. Após 14 edições, a Venezuela é a sétima, com 61 medalhas de ouro, 133 de prata e 189 de bronze, seguida pela Colômbia (43, 89 e 149), e só depois aparece o Chile, na nona posição, com apenas 31 de ouro, 65 de prata e 195 de bronze. O Pan mobiliza o público, coloca novas modalidades em evidência, motiva jovens para a prática esportiva… Enfim, ele traz grandes benefícios a curto, médio e longo prazo. E, para mim, esporte é mais importante do que política. Aliás, o esporte é uma forma inteligente e pacífica de se fazer política. É verdadeiro, fala a linguagem que o jovem quer ouvir. Um bom lobby pode tornar até um sujeito medíocre famoso e ‘importante’, mas no esporte é preciso ser o melhor para vencer, há pouquíssimo espaço para falsidades.


Os jornalistas brasileiros compartilham a sua percepção?


O.C. – Não creio que a maior parte da imprensa brasileira tenha entendido o significado do Pan. A imprensa cobre as mortes nas favelas do Rio, cobre as manifestações contra a violência, e quando há um evento que pode efetivamente agir contra esse estado de coisas, ela não percebe, ou não quer perceber. O Pan deveria ter e espero que ainda tenha um tratamento mais humano e carinhoso por parte da mídia, principalmente da mídia esportiva, que deveria adorar esporte. Afinal de contas, as histórias do Pan são escritas pelo talento, pela garra, pelo sonho dos atletas, e eles merecem o nosso respeito. São os verdadeiros heróis modernos, aqueles que precisam dar 100% para alcançar o sucesso. Não têm nada de fakes, são autênticos.


Qual tem sido a diferença fundamental entre a cobertura jornalística da televisão e a realizada pela mídia impressa?


O.C. – A mídia impressa é mais informativa, mais detalhista. A tevê pende mais para o sensacionalismo. Mas, na verdade, a grande diferença está na cobertura das empresas que fazem parte das Organizações Globo – que detêm a exclusividade na cobertura do evento – e as outras: a primeira tende a ver apenas o lado positivo dos Jogos, enquanto a outra enxerga apenas o lado ruim…


Então a TV Globo ‘infla’ o evento, enquanto os jornais de outros grupos, que não precisaram pagar, podem ser mais críticos e, conseqüentemente, ‘verdadeiros’ em suas reportagens e análises sobre o Pan?


O.C. – Não é todo profissional da Globo que faz isso. O Galvão Bueno faz, mas é estilo dele. Sempre foi assim. Não vejo o Cléber Machado supervalorizar o Pan, além do valor natural que a competição tem. No geral, percebe-se que o tom ufanista realmente prepondera na Globo e no SporTV, mas os veículos concorrentes estão fazendo pior, pois, para tentar diminuir o evento e assim prejudicar a Globo, estão pinçando apenas os aspectos negativos e minimizando as muitas coisas boas da competição. Ser crítico é muito bom, contribui para o desenvolvimento e a democracia, e eu vim de uma das escolas mais críticas do jornalismo, que foi o Jornal da Tarde nos seus tempos áureos. Qualquer repórter podia questionar tudo e todos e, por sua vez, nunca era censurado pelo editor. Havia liberdade total para a crítica, desde que fundamentada. Porém, a crítica repetitiva, sistemática sempre foi desestimulada no JT. Esse comportamento era tido como ‘campanha’, ‘perseguição’, e severamente reprovado. Hoje percebo muita gente fazendo campanha contra o Pan. E gente que trabalha como jornalista esportivo! É um contra-senso. Se o sujeito gosta de esporte, deveria estar contente de ver o Pan no Brasil. Outro dia entrei num blog chamado ‘A verdade sobre o Pan’. Só tinha críticas e notícias ruins. A intenção, evidente, era passar a imagem de que o Pan do Rio está envolvido em maracutaias e desorganização. Entre as notícias, a informação de que duas pedras foram jogadas no ônibus, com remadores brasileiros, que passava pela Linha Amarela. Ora, esse é um problema de educação do povo. No Pan de Chicago, em 1959, o remador brasileiro Ronaldo Duncan Arantes foi assassinado, e até agora não se descobriu o culpado. E nem por isso os Estados Unidos deixaram de organizar outro Pan-americano, olimpíadas, mundiais, etc.


Lançar suspeita e tirar o corpo fora é covardia


Essa cobertura dos problemas do cotidiano pode, em alguma medida, prejudicar a imagem de um evento que, na outra ponta, gera benefícios para uma ou outra parcela dessa mesma população?


O.C. – O Pan gera empregos, deixa ginásios e estádios para a cidade, atrai turistas (700 mil deles devem assistir aos Jogos no Rio)… Então, a população tem muito mais benefícios do que transtornos. E mesmo estes últimos são passageiros, já que a competição dura apenas duas semanas. Algumas obras públicas atrapalham muito mais e por mais tempo do que o Pan.


Os jornalistas devem procurar a ênfase ideal ou os fatos devem falar mais alto, e, portanto, isso não é problema deles?


O.C. – A imprensa procurará o enfoque que quiser, dentro de sua especialidade. Que a editoria de cidades cubra os transtornos para a população, mas que o caderno de esportes não deixe de dar uma cobertura competente do Pan. Como sempre, talvez até mais do que a orientação superior, a cobertura vai depender da cabeça e do coração de cada jornalista. Quem ama o esporte saberá enxergar além das aparências…


Como a mídia tem tratado as denúncias e as críticas aos supostos abusos dos organizadores?


O.C. – Não li ou ouvi nenhuma crítica conclusiva até agora. Por mais que o orçamento tenha estourado, isso não prova má-fé, mas sim falta de planejamento – que é incompetência, mas não é crime. Com tanto disse-me-disse, alguém deveria ir fundo e trazer notas, cópias de cheques, comprovantes de depósitos, depoimentos gravados, testemunhas, sei lá, mas alguma evidência de que houve superfaturamento nessas obras, de que alguém se beneficiou. Porém, ninguém fez isso até agora. Então, ou são incompetentes para conseguir as provas ou têm medo, ou só querem mesmo tumultuar. Não é o tipo de jornalismo em que acredito. Como cidadão de um País que bate todos os recordes de corrupção, também fico de cabelo em pé quando ouço falar nesse dinheirão todo saindo dos cofres públicos. Mas será que não custou isso mesmo? Alguém teve o cuidado de orçar as obras com empresas sérias e comprovar esses gastos? Se essa pauta é tão importante para tantos veículos, por que não vão fundo nas investigações? O que não pode, e aí é leviandade, é alimentar essa onda de boatos que só atrapalham o evento, que só desmotivam e prejudicam as pessoas diretamente envolvidas nele – como atletas, técnicos, dirigentes, o próprio público – e não fazer um esforço sincero para desvendar o caso. Lançar a suspeita no ar e tirar o corpo fora é, no mínimo, covardia.


Os jornalistas que cobrem o cotidiano do esporte são os mais indicados para investigar essas denúncias? De um lado, eles têm conhecimento do meio, o que pode ajudar; de outro, acabam, pela própria convivência, tendo intimidade com os acusados, o que pode atrapalhar…


O.C. – O bom jornalista esportivo tem inteligência, jogo de cintura e hombridade para fazer qualquer matéria. Alguns dos grandes jornalistas deste País dedicavam-se ao esporte, como Mário Filho, Nelson Rodrigues, Armando Nogueira… E por este mundo afora tivemos gênios ganhadores do Prêmio Nobel, como Ernest Hemingway e Albert Camus, que adoravam escrever sobre esporte. Quando editor, sempre aconselhei os repórteres a não ficarem amigos de atletas, técnicos ou dirigentes. Nunca se sabe quando teremos de apertá-los. Por outro lado, eles costumam ser ‘amigos’ dos jornalistas enquanto lhes convêm. Portanto, é, sim, o próprio jornalista esportivo quem deve investigar essas denúncias.


A sua obra sobe os Jogos Pan-americanos é fruto de vários anos de estudo e experiência. Qual é a sua avaliação do trabalho dos jornalistas que estão cobrindo este Pan?


O.C. – A história esportiva, para mim, é coisa séria, por isso fiz ‘Heróis da América, a história completa dos Jogos Pan-americanos’, que a Editora Planeta editou com esmero. Não há jornalista especializado em Jogos Pan-americanos, claro. Não encontrei nenhum que acompanhasse a história dos Jogos há mais tempo ou tivesse uma noção mais abrangente do evento. Mas também não creio que os veículos estejam preocupados em ter um profissional com esse perfil trabalhando para eles neste Pan. A idéia geral é se preocupar com o momento, e, diante de qualquer fato que obrigue um acesso à história, recorrer ao Google… Então, mesmo havendo muita gente boa e motivada cobrindo o Pan, certamente ‘comerão algumas bolas’ por falta de preparo e planejamento anterior. Preparar-se antes é imprescindível para uma boa cobertura. Sempre surgem fatos novos que podem pegá-lo de surpresa. Aprendi a me preparar para uma megacobertura como essa com o colega Castilho de Andrade, do Jornal da Tarde. Gastamos algumas semanas visitando confederações e federações antes de viajarmos para San Juan a fim de cobrir o Pan de 1979. O resultado foi que fizemos um grande trabalho e ganhamos o Prêmio Esso. Agora espero que o meu livro possa ajudar os jornalistas que estão cobrindo o Pan.


O livro tem várias curiosidades sobre a história do Pan. Quais você sublinha?


O.C. – Ernesto ‘Che’ Guevara era um médico argentino que vivia de bicos como fotógrafo, quando foi contratado pela Agência Latina, de Buenos Aires, para cobrir o Pan do México, em 1955. Deveria receber quatro mil dólares pelo trabalho. Fez algumas fotos, entre elas uma que coloco no livro – a do argentino Juan Miranda, campeão dos 10 mil metros, no alto do pódio, ladeado por dois norte-americanos. Guevara nunca recebeu os quatro mil dólares prometidos. E na Cidade do México conheceu Fidel Castro, com quem tomaria Havana quatro anos depois.


A linda atriz Grace Kelly convenceu os diretores da Paramount Pictures a doar a arrecadação da estréia de seu filme ‘The Country Girl’ à equipe norte-americana que disputou o Pan de 1955, no México. Por incrível que pareça, o Comitê Olímpico dos Estados Unidos não tinha dinheiro suficiente para montar uma equipe pan-americana forte, e, além da ajuda da Paramount Pictures, contou com rendas de shows de Frank Sinatra e de exibições dos Globe Trotters. Grace tinha uma razão especial para ajudar a equipe: seu irmão, John B. Kelly Jr., competiu no remo, no barco esquife simples. Competiu e ganhou a medalha de ouro, seguindo o caminho do pai, John B. Kelly, três vezes medalhista de ouro em olimpíadas.


Havia também um padre boxeador que se chamava Javier Collin e era um mexicano de 22 anos que, após o Pan de San Juan, em 1979, iria para a sua aldeia no México e se consagraria padre. Com profundos dramas de consciência, o bom pugilista Collin nocauteava seus adversários durante o dia e à noite chorava e rezava por eles. Acabou com a medalha de bronze na categoria médio-ligeiro.


E o loiro de olhos claros Tomás Valdemar Hintnaus nasceu no Brasil, quando seus pais estavam de férias, e por isso tinha dupla nacionalidade. Mas só se lembrou de que também era brasileiro quando não conseguiu vaga para representar os Estados Unidos na prova de salto com vara do Pan de 1983, em Caracas. Então, Tomás consultou o Comitê Olímpico Brasileiro e conseguiu disputar os Jogos pelo Brasil, ganhando a medalha de bronze e agradecendo o prêmio com um sonoro ‘thanks’.

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Jornalista