Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Paulo Machado

‘A leitora Rossana Lana escreveu para esta Ouvidoria perguntando por que a Agência Brasil insiste em tratar a interligação do Rio São Francisco como transposição. Ela lembra que o ex-ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes, explicou em entrevista à NBr, a televisão do governo federal, uma das emissoras da Radiobrás, por que deve ser usado o termo ‘interligação’. Ela também diz que não existe nenhum projeto de transposição do rio.

Levei a dúvida para a Agência Brasil. A resposta foi a seguinte: depois de um longo debate sobre o assunto na redação, decidiu-se que sempre que se trata do projeto do governo, ele é referido por seu nome completo, o nome integral do conjunto de medidas: Projeto de Integração do Rio São Francisco às Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional. Entretanto, ao se reportar ao debate público, utilizam a palavra ‘transposição’, por entender que ela se aproxima muito mais do uso corrente do cidadão brasileiro quando fala do projeto.

Recorri ao Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, do professor Silveira Bueno. Nele, ‘integração’ significa ‘somar a parte que falta’ e ‘transposição’ significa ‘mudança de lugar’. Já o vocábulo ‘interligação’, que significa ‘ligação mútua’, sempre foi muito pouco utilizado para descrever o projeto. Aplicando essas definições ao caso concreto do São Francisco podemos concluir que para que haja a integração ou interligação das bacias é preciso somar à água do Nordeste Setentrional a água disponível no São Francisco. Para isso, é necessário fazer a transposição com a mudança de lugar da água do São Francisco para a Bacia do Nordeste Setentrional. Até aí há como dizer que os termos podem ser usados de maneira complementar, ou seja, sem transposição não há integração nem interligação e para haver integração é preciso fazer a transposição. Então, onde está o problema em usar um dos termos ou ainda os três, indistintamente?

Longe de se tratar de uma discussão semântica, o próprio fato de a leitora reivindicar o uso da palavra ‘interligação’ com base na palavra do ex-ministro indica que há algo mais por trás dessa disputa lingüística.

Talvez a conveniência de usar um ou outro termo dependa do ponto de vista de quem olha. Para quem usufrui da água do São Francisco hoje, a transposição pode significar que estão tirando algo que lhe pertence. Para quem vai se beneficiar da integração ou interligação pode significar acesso à parte da água que lhe falta. A partir daí, o significado das palavras passa a valer mais do que as próprias palavras. Ao associarmos um juízo de valor a um termo, estamos fazendo um uso ideológico desse termo.

Em novembro de 2004, em uma matéria publicada pela Agência Brasil, o então ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes, se propunha a empreender uma campanha de convencimento sobre o assunto. Ele declarou: ‘O Ministério da Integração Nacional pretende convencer os brasileiros que o termo mais usado para transferência das águas, transposição, deve ser substituído por integração’. Mas o próprio ministro, em outra matéria da agência, datada de abril de 2005, afirmou: ‘Colocar a revitalização antes da transposição é um ato de malícia. A água está faltando é hoje’.

Esta Ouvidoria fez uma análise de como está retratado esse debate lingüístico por parte do governo e dos que se colocam contra o projeto nas 39 matérias publicadas pela Agência Brasil no período compreendido entre 6 e 29 de março último.

Há predominância do uso do termo ‘transposição’. Das 39 matérias, ‘transposição’ aparece já no título de 27 (69% do total), enquanto ‘integração’ aparece somente uma vez (3% do total). Nos títulos das 11 matérias restantes nenhum dos dois vocábulos é usado.

Nessas matérias essas palavras são usadas 148 vezes. ‘Transposição’ aparece 124 vezes (84%) e ‘integração’, 24 vezes (16%). Analisando a situação em que foi empregado um ou outro termo, das 124 vezes que aparece ‘transposição’, em 94 delas a escolha foi feita pelo repórter e as 30 ocorrências restantes correspondem a citações das pessoas ouvidas pela reportagem. Já o termo ‘integração’ foi empregado 11 vezes por citação da pessoa entrevistada, ou por se tratar do nome oficial do projeto, e 13 vezes por opção da reportagem.

Pela questão levantada pela leitora ela deseja que a agência faça a opção pela palavra ‘interligação’, baseada na fala do ex-ministro Ciro Gomes, que representa o lado favorável ao projeto.

Se a redação da Agência Brasil fizer a opção pelo uso incondicional de um dos termos ela não estará tomando partido a favor ou contra o projeto em questão? Ela não estará revelando preferência pelos interesses de um dos grupos em relação ao projeto?

As matérias publicadas pela agência nos últimos dias mostram o presidente Lula dizendo: ‘A transposição e a revitalização do rio não são obras excludentes’. O coordenador do projeto, Rômulo de Macedo Vieira, do Ministério da Integração Nacional afirma: ‘A população do Nordeste Setentrional, que vai ser beneficiada com a transposição, não pode esperar todo esse tempo para ter água’.

Todos sabem serem o presidente e o coordenador defensores do projeto. Mas eles, ao usar indistintamente os termos ‘transposição’ e ‘integração’ nos discursos, não estariam desapropriando o sentido ideológico dessas palavras? Isso indica que o governo desistiu dessa disputa semântica e que não quer mais ‘convencer os brasileiros’ sobre que termo deva ser usado?

Ao não tentar impor um vocábulo como ‘correto’, a agência poderá noticiar os fatos na linguagem e no contexto de seus protagonistas.

Ao jornalismo não cabe impor o ‘certo’ ou o ‘errado’, como se houvesse uma única verdade, mas sim reportar as diferentes verdades. Cada um dos atores em disputa na questão tem suas próprias razões para utilizar um termo ou outro e são essas razões que precisam ser noticiadas com imparcialidade para que o leitor tire as próprias conclusões.

Até a próxima semana’