Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Paulo Machado

‘A leitora Cristina Lara escreveu para a Ouvidoria dizendo: ‘Tenho acompanhado as matérias da Agência Brasil sobre as Fundações Estatais e sinto falta de um contraponto do que é noticiado, pois na maioria das matérias só há a opinião de pessoas do governo que são a favor das fundações. Gostaria de ouvir o outro lado também. Gostaria de ouvir a opinião e a avaliação de pessoas da área da saúde, pesquisadores do SUS e até mesmo de sanitaristas sobre o projeto.’

A Ouvidoria enviou a mensagem da leitora para a Agência Brasil que respondeu:’Após a primeira entrevista do ministro [da Saúde] nos jornais, começamos a cobrir o assunto. Acompanhamos a reunião do Conselho Nacional de Saúde, instância máxima de participação social sobre o tema, e ouvimos as fontes contrárias à fundação. Não é verdade que estamos ouvindo só o governo. Nesta semana, estamos com o tema na pauta, ouvindo gestores, especialistas e servidores para explicar pontos favoráveis e contrários, além do impacto direito e indireto para a população brasileira. Também fizemos um infográfico para mostrar onde se situa a configuração jurídica das fundações estatais’.

Estabelecida a polêmica, a Ouvidoria analisou 25 matérias publicadas sobre o assunto, entre 4 de abril e 14 de agosto, e o infográfico a que se referiu a Agência.

Aparentemente, as matérias apresentaram um equilíbrio entre opiniões a favor e contra o projeto do governo. O problema foi o tipo de cobertura e de tratamento dado ao assunto. Ao contrário do que muitos acreditam, os fatos não falam por si só.

A Agência optou pela cobertura dos fatos e pela veiculação de declarações das fontes se eximindo de contextualizar o assunto com base no processo histórico em curso. Procedendo dessa maneira fica praticamente impossível o leitor saber exatamente a dimensão do que está sendo discutido.

As autoridades que se pronunciaram nas matérias repetiram sempre os mesmos argumentos favoráveis ao projeto sem explicar qual seria o impacto das propostas na qualidade dos serviços públicos – ao mudar a maneira de contratar, avaliar e dispensar servidores – ou ainda na forma de financiar esses serviços.

Por outro lado, as opiniões contrárias ao projeto foram quase exclusivamente de representantes sindicais de servidores em greve. Um momento delicado para ouvir esses representantes, uma vez que freqüentemente as matérias focadas no movimento reivindicatório sobrepõe questões trabalhistas e corporativistas a o que deveria ser um debate isento e qualificado sobre o projeto do governo. Fica difícil para o leitor distinguir entre uma coisa e outra.

Devido às circunstâncias, por vezes a cobertura da Agência sobre o assunto perdeu o foco na questão do projeto do governo ao se ocupar muito mais de episódios da greve do que da discussão de fundo das reivindicações em pauta, deixando de explicar as razões da oposição à criação das fundações.

O uso de expressões como ‘privatizarão o serviço público’ e ‘terceirização dos laboratórios’ sem o contexto em que elas se aplicam no debate sobre o direito do cidadão a serviços de qualidade na atenção à saúde não contribuem para esclarecer as divergências entre o ministro da Saúde e os sindicalistas.

Ao analisar a evolução da cobertura nos três primeiros meses não foi possível saber do que trata o projeto e por que ele causou tanta polêmica.

Na matéria ‘Temporão diz que projeto que irá ao Congresso poderá melhorar atendimento em hospitais públicos’, publicada em 12 de julho, apesar do verbo, no seu título, estar no tempo futuro, a notícia diz que o projeto foi enviado ontem (11) ao Congresso Nacional. Fala de vantagens na opinião dos ministros da saúde e do planejamento e recupera os protestos dos representantes sindicais, mas não explica quais são as possíveis vantagens nem as possíveis desvantagens. O leitor continua sem as informações necessárias para tomar uma posição contra ou a favor do projeto.

Somente a partir de 13 de julho que as matérias começam a esclarecer o conteúdo do projeto do governo. Finalmente a Agência ouviu um especialista. Alexandre Motonaga, professor da Fundação Getúlio Vargas, que dá explicações sobre o que mudaria com a criação das fundações em nível federal e justifica sua opinião pessoal favorável ao projeto falando do direito do cidadão a serviços públicos de qualidade.

A matéria ‘Lupi diz que liminar do Supremo não deverá inviabilizar contratações pelas regras da CLT’, de 3 de agosto, poderia ter sido uma oportunidade de a Agência resgatar o processo histórico em curso uma vez que o ministro fala da terceirização de serviços públicos. Ela poderia ter explicado, por exemplo, como o Estado brasileiro chegou a essa situação após seguir os preceitos do neoliberalismo durante a década de 90. Também fala da reforma administrativa aprovada pelo governo em 1998 sem, todavia, recuperar quais foram os objetivos dessa reforma e o que mudou na administração pública brasileira. Estaria o governo promovendo agora uma segunda etapa da reforma administrativa do Estado iniciada em 1998?

Em sua cobertura, a Agência ouviu um sanitarista, como pediu a leitora. Foi o professor da Escola de Saúde Pública Sérgio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Pedro Ribeiro Barbosa, que defendeu o modelo de Fundação Estatal. A reportagem todavia não aproveitou o conhecimento do especialista em SUS para explicar as divergências em torno da questão, se restringindo apenas a divulgar suas opiniões pessoais, sem justificá-las. A função do jornalismo ao ouvir especialistas é proporcionar uma oportunidade para que eles restituam à sociedade um pouco do conhecimento que obtiveram graças a ela.

A argumentação mais consistente contra o projeto foi apresentada pela secretária de Saúde de Amparo na matéria ‘Gestores defendem regulamentação de fundações estatais para gerir hospitais públicos’, publicada em 14 de agosto. Ela relatou uma experiência em que o município resolveu os problemas de gestão por meio de uma reforma administrativa na área de saúde que incluiu um novo plano de cargos e salários para o município e a obrigatoriedade do concurso público para a contratação de trabalhadores. No caso de Amparo, a gestão dos hospitais é totalmente feita pela administração direta do município, ou seja, não há terceirizações. Mas, o depoimento da fonte, contradiz o título da matéria.

Finalmente, nas duas ultimas semanas, a Agência Brasil publicou um gráfico ilustrativo que dá conta de onde se encaixaria juridicamente o projeto de fundação do governo na administração pública e vem se aprofundando no assunto. Com isso, provavelmente, está permitindo que os leitores comecem a entender quais os interesses que se contrapõem e por quê.

O governo, ao processar reformas na administração do Estado brasileiro está mexendo com os direitos e deveres de milhões de cidadãos que de uma forma ou de outra serão afetados pelas mudanças. Ainda falta a Agência informar como os resultados dessa polêmica podem gerar impacto nos direitos do cidadão a serviços públicos de qualidade.

Até a próxima semana.’