Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Pedra e afeto

Uma cidade pode ser o lugar em que as memórias se estruturam ou desaparecem. Washington é um exemplo quase completo de lugar que converge à memória de naturezas política, econômica, artística e histórica dos Estados Unidos. Os nomes das ruas, das praças, monumentos, edifícios, bairros e regiões provocam a lembrança dos principais momentos da narrativa histórica norte-americana nos habitantes e seus visitantes.


Um bom exemplo é a região da cidade dedicada aos memoriais, o Mall, que lembra e homenageia os soldados norte-americanos mortos na Segunda Grande Guerra Mundial, na Guerra da Coréia e na Guerra do Vietnã. Uma região silenciosa, banhada pelo rio Potomac e vizinha de lugares que evocam personagens como Lincoln, Martin Luther King e até o filme Forrest Gump. Para um observador quase incidental impressiona a quantidade de pessoas que visitam esses memoriais e, por meio de um simples registro fotográfico, a ser mostrado aos amigos e guardado, querem se incluir na paisagem histórica.


Vale destacar o memorial dedicado aos soldados da Guerra do Vietnã, de delicadeza inenarrável. Um grande muro de mármore negro, cravado abaixo do grande jardim, evoca a idéia de uma viagem para o território dos mortos. Um suave declive, leva aos nomes dos quase 60.000 soldados mortos, todos, absolutamente todos, escritos na pedra preta, em desordem alfabética, que traz outra realidade: estão organizados pela data da morte de cada combatente.


Nos sentidos


A arquiteta Maya Lin, sua criadora, procurou aninhar carinhosamente aqueles que viveram bons e maus momentos juntos no Vietnã para reverenciá-los. Uma forma de organização de mensagens e do espaço que aproxima a arquitetura da memória à arte. Uma lição de respeito aos fatos que geraram as informações. Um bálsamo em uma sociedade em que as mensagens são emitidas de maneira massiva e rápida e sem reflexão sobre os seus impactos éticos, entre eles o esquecimento, o apagamento de memórias e o fuzilamento de reputações.


Tudo isso chama ainda mais a atenção por que, no geral, a memória oficial, promovida por governos e políticos, é morta, estrutura-se na indelicadeza do tratamento da informação e na escolha de homenageados poderosos. São muitos os exemplos encontrados nos equipamentos urbanos brasileiros, cujos nomes são memória de puro puxa-saquismo.


Memória viva é aquela que penetra profundamente nos sentidos e tem interação com toda a sociedade. O memorial do Vietnã tem estas qualidades. Os administradores públicos norte-americanos, que bancaram ideia tão delicada e oposta à mentalidade política vigente, de transacionar homenagens, com certeza são pessoas benditas.

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Jornalista, professor da ECA-USP e diretor-geral da Associação Brasileira de Comunicação Empresarial (Aberje)