Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Pelo direito de não falar besteira e ser ouvido

Quando o pensador e teórico da democracia Norberto Bobbio relaciona imprensa e liberdade em uma das suas muitas reflexões sobre o assunto, destaca que uma democracia só pode ser considerada como tal quando todos os interesses e setores da sociedade podem manifestar sua opinião de maneira livre, orgânica e sem exclusão, usando de igual oportunidade e direito, e respeitando os mesmos deveres.

A lembrança desse equilíbrio de força para a manutenção do bem-estar democrático me veio depois da declaração de que Glauber Rocha ‘é uma merda,’, proferida pelo profissional do humor Marcelo Madureira, que integra o grupo Casseta & Planeta.

A projeção nacional de Marcelo Madureira, que tem visibilidade garantida na tela da Globo e nos demais meios de comunicação, tanto nos que fazem parte das Organizações quanto no dos concorrentes, lhe assegura uma influência simbólica, quer ele queira ou não. É claro que o povo não é bobo, mas é mal informado e mal formado. Dentre as muitas referências nacionais a que a população passou a não ter acesso, Glauber Rocha está entre os que foram retirados da pauta do conhecimento. E foi nesse cenário que Marcelo Madureira deu sua opinião sobre seu gosto a respeito do cineasta.

O prato-salvação dos estudantes

Opinião e gosto, duas modalidades de expressão absolutamente em alta em rodas de conversa que formam o pensamento de celebridades. Opinião, essa donna mobile para quem Platão torcia o nariz e Roland Barthes soube, como ninguém, revelar toda a graciosa estupidez contida na doxa, o nome grego de opinião.Gosto, essa superficialidade do sentido, naturalmente necessária e gostosa, mas que reduz as relações a um impasse quando há discordância e, em caso de acerto, dá às partes uma sensação de embalo no ritmo pop do ‘se ela dança, eu danço’ do MC Leozinho.

A declaração de Marcelo Madureira de que Glauber ‘é uma merda’ provocou reação. Democraticamente, o jornal que deu na primeira página do caderno de entretenimento a fala do profissional do humor e publicou no mesmo espaço o contraponto de que Glauber ‘não é uma merda’. O que ocorre é que o problema já estava colocado, e os que saíram em reparo do que disse Marcelo Madureira não têm outras mídias diárias de massa para mostrar o quê que o baiano Glauber Rocha tem. Efetivamente, a falta de meios de comunicação alternativos diários de massa desafia a democracia postulada por Bobbio e, paradoxalmente, tão defendida por proprietários de mídias e jornalistas. Liberdade de imprensa também é o direito de não falar merda e chegar ao grande público ou à multidão que freqüenta a internet em condições de igualdade com o discurso adverso. Fora isso, o que se tem é a hegemonia de um modo de pensar o planeta e estruturar a vida.

Seguindo a análise das conseqüências simbólicas decorrentes da falta de um diário para fazer frente ao pensamento único, cabe abrir o leque da observação sobre o noticiário de um modo geral. E o que parece é que o grão da vez nas páginas de economia é o arroz. Num dia, aparece a foto da mulher em um mercado de rua na Tailândia comprando o produto e o texto alertando para o aumento do consumo no mundo e a conseqüente elevação do preço. Num outro, também, o presidente do Banco Mundial, Robert Zoellick, posa com um saco de arroz em uma das mãos, apelando para providências que contenham o galope do desequilíbrio entre muita demanda e pouca oferta. Aliás, o tipo do produto mostrado por Zoellick, na foto da primeira página do ‘Caderno de Economia’ de O Globo, de 11 de abril último, é o aromatic rice, o uma vez tão popular e baratinho riz parfumé, ou arroz perfumado da Tailândia, o prato-salvação da Paris dos estudantes bolsistas.

Uma briga escolástica

Isso me reportou ao ano de 1992. Tinha sobrado um dinheirinho e estava almoçando em um daqueles pequenos restaurantes do bairro do Marais onde as mesas coladas umas nas outras faziam com que a pessoa se sentisse acompanhada mesmo estando só. Foi assim que conheci uma pesquisadora da universidade de Princeton, Estados Unidos. Ela estudava arroz. Corria o mundo estudando espécies, sementes e capacidade de resistência aos diferentes solos e climas. Achei aquilo de uma originalidade incrível. Pensei no meu querido arrozinho perfumado que muitos dos meus amigos no Brasil julgavam ser mais um tipo de perfume francês.

Tudo era muito arrojado, com muito dinheiro em jogo. Na ocasião, longe de mim ligar o nome do investimento à pessoa dos transgênicos. Mas, agora, tudo faz sentido. Pesquisa realizada, sementes geneticamente modificadas desenvolvidas, está na hora de colher os lucros e a implementação desse objetivo está no acerto e na potência do discurso midiático. Então, é preciso disseminar a idéia de que os alimentos ficarão mais baratos com os produtos transgênicos e que ninguém passará fome mesmo que o planeta sucumba à poluição e às catástrofes naturais, como maremotos, terremotos, tornados e super-raios. As indústrias que investem na biotecnologia de transformação genética apostam num mundo flagelado, o que é muito simples de ser verificado a partir de argumentações a favor do uso das sementes transgênicas: florescem em ambientes inóspitos, terras áridas, solo salobro, resistem a insetos, inundações, frios e aquecimentos extremos.

Entretanto, o esclarecimento a respeito desse modo de conceber a vida no planeta é quase sempre noticiado de modo messiânico, seja nas performances do Greenpeace, nas ações do MST, ou na idéia de terror que desafia a natureza podendo provocar a ira divina. Uma briga escolástica entre ciência e religião que obscurece as razões econômicas e o embate pelo domínio do mundo. Faz lembrar a passagem da peça de Brecht sobre Galileu em que o cientista aponta a luneta para o céu, pede aos padres que olhem e verifiquem a confirmação de sua tese heliocêntrica e os representantes da Igreja católica abaixam o instrumento, o direcionam para a terra e ficam apreciando a linha reta do horizonte.

Remediar o irremediável

No caso dos transgênicos, como não há mídia diária para dizer o não dito, os jornais que estão aí, na maioria das vezes, negam o que é e explicam o que não é.

Notícias que também chamaram atenção foram as que trataram das indenizações aos que sofreram diretamente a violência do Estado no período da ditadura no Brasil e do lançamento do livro de Eugênio Bucci sobre o tempo em exerceu cargo de confiança na presidência da Radiobras. No caso de Bucci, a aparência é de prestação de serviço à democracia denunciado a irregular interferência do governo na liberdade de expressão de um canal estatal de comunicação. Mas o que salta do texto é a frustrada tentativa de acabar com a veiculação obrigatória em todas as rádios, privada e estatal, do programa Voz do Brasil.

A campanha foi brutal, desmoralizante, debochada, carregada na chacota. Ocorre que a Voz do Brasil é o único espaço de mídia que o parlamento brasileiro tem para divulgar as propostas que não interessam ser divulgadas pela grande mídia . Está certo que o formato, a prosódia e a inflexão da Voz do Brasil não são sedutores para grande parte dos ouvintes contemporâneos e urbanos, mas, numa analogia barata, são poucos os casos de pessoas que detonam suas casas porque deu cupim nas estruturas ou porque os canos estão entupidos. O razoável é limpar o ambiente e fazer reforma. Acabar com a Voz do Brasil alegando que a obrigatoriedade não é democrática é colocar em xeque a própria democracia.

Quanto às indenizações, vimos cunhada a expressão bolsa-ditadura como passaram a ser chamadas em O Globo as reparações em espécie que vêm a ser o jeito brasileiro de remediar o irremediável, conforme observou em sua crônica de domingo,13 de abril, no mesmo jornal, o sempre pertinente Veríssimo – que pouco fala mas pensa muito bem. Se houvesse igualdade de condições para a criação de mídias alternativas diárias aos meios de comunicação de massa que estão em circulação, a contraposição a esse tratamento seria de esclarecer que o Estado não pode, sob hipótese alguma, torturar e promover um ambiente de caça às bruxas.

‘Chinesismo’, e não, capitalismo

Entristece ler o depoimento de militantes que foram torturados ou perseguidos e que não pediram indenização porque sabiam dos riscos que estavam correndo quando entraram na luta contra a ditadura. Não é possível justificar a violência do Estado. Saber que poderia ser morto em combate, ser preso e responder a processo de fachada não era desejado, mas esperado. Mas massacrado, injuriado, humilhado, exilado, impedido de trabalhar, o que é isso, companheiro? É um desserviço à formação das novas gerações já expressa na seção ‘Cartas dos Leitores’, na qual muitos jovens tratam com ironia a justiça paga em dinheiro.

Noto que há uma tendência em identificar militância política do tempo da ditadura com o atual voluntariado que abraça a Lagoa e para desfazer esse equivoco inominável falta uma mídia alternativa diária nas bancas oferecendo um outro olhar ao insulto do sintagma pejorativo bolsa-ditadura.

Mas nesta discussão sobre democracia e o direito de falar merda, entram também as análises sobre a China. Nesse particular, valham-me Confúcio e Lao Tse. Por aqui, os defensores do mercado enxergam capitalismo por toda a parte e dizem qualquer coisa para afirmar esse sistema e suas vantagens. O artigo ‘Não é de sua conta, mamãe’, uma defesa do ensino privado publicado na página de ‘Opinião’ de O Globo em 8 de abril último, destaca como uma virtude capitalista o fato de a educação na China ser da conta da família, e não uma responsabilidade do Estado para com seus cidadãos.

Acontece que na China a família não é uma célula individual apartada do coletivo. Ela é a musculatura do coletivo e por isso segue uma moral política de interesse geral sistematizada por Confúcio. No momento, a China está vivendo um reflorescimento do confucionismo como uma maneira de frear a influência liberal que acompanha o kit das novidades tecnológicas que compõem o modelo marxista-leninista-maoísta do socialismo do tipo chinês iniciado no final dos anos de 1978 por Deng Xiaoping. Para a China, e Confúcio inclusive, educação é um aspecto fundamental. É conhecida a máxima do pensador: ‘Estudar sem pensar, é inútil; pensar sem estudar, é perigoso.’ Portanto, não é capitalismo que move as famílias chinesas, mas o que ensaio chamar de ‘chinesismo’.

Visão ampliada da realidade

A contundência de Glauber, sentida como ‘uma merda’ pelo profissional de humor Marcelo Madureira, me inspirou esse roteiro aparentemente sem pé nem cabeça de análise do noticiário de um jornal de grande circulação e alcance num ambiente democrático em que as oportunidades midiáticas são desiguais. Alguns países, como a Suécia, têm políticas de Estado de empenho de verbas públicas para todos os meios de comunicação, garantindo a pluralidade de que fala Norberto Bobbio. No caso brasileiro, por exemplo, as cotas de publicidade estatais deveriam contemplar todos os diários, independente de ideologia. Essa é uma proposta para iniciar uma ampla discussão que entendo se fazer mais do que necessária.

Nos idos dos anos de 1970, quando estava começando na profissão e fazia freelance para o Jornal do Brasil, toda vez que entrava na redação Glauber mexia comigo com um bordão: ‘Está pr(é)-pa-ra-da para a d(é)-mo-cra-cia?’ Acento baiano e vozeirão. E eu, agradecida com a provocação, respondia: ‘Já estou até caindo de madura.’ Assim terminava a nossa suficiente interlocução e, desde muito cedo, minha filha aprendeu a resposta ao cerco: ‘Se entrega, Corisco’; ‘Não me entrego, não.’

Gosto não se discute, mas quando o gosto toma a forma de discurso público, discute-se, sim. E democracia é muito mais do que poder falar merda publicamente. É, sobretudo, o direito de ter acesso a uma visão ampliada da realidade que abra para outros conhecimentos e informações. Desse modo nos aproximamos da igualdade que falta no tripé republicano formado pela liberdade e pela fraternidade. Assim, penso eu, todos ganham e até o humor fica mais rico.

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Jornalista, professora, mestre e doutora em Semiologia pela UFRJ