Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Perde-se a notícia, mas não a piada

‘Ser mãe é a sublimação da mulher.’

A frase, que saiu na imprensa semana passada, não estava estampada em nenhum pára-choque de caminhão, mas bem que poderia. Foi dita pelo deputado Severino Cavalcanti, sabatinado pela Folha de S. Paulo em 2 de maio. E mais uma vez a imprensa perdeu a oportunidade de discutir a situação da mulher no Brasil.

Os entrevistadores preferiram ficar no folclore, em vez de analisar o tipo de pensamento que motivou as frases infelizes do parlamentar. Uma linha de pensamento machista, para a qual a mulher só é plenamente feliz quando cumpre seu papel biológico de procriar, de preferência com sua situação pessoal validada pelo casamento. Como disse o presidente da Câmara, a mulher tem que ser pura, virgem e, se for vítima de um ‘acidente horrendo’ como o estupro, ‘precisa do apoio da família para criar o filho e não ficar uma pessoa marcada’.

Severino Cavalcanti se revela um homem medieval, achando que, na mulher, a virgindade é atributo essencial e que a maternidade é a sublimação feminina. Isso, em princípio, talvez não assuste ninguém. O que assusta é saber que ele representa a mentalidade de boa parcela do povo brasileiro. E, pior de tudo, que este senhor tem poder de decisão na hora de discutir leis que se referem às mulheres.

Deslizes satisfazem

Preocupa também a postura da imprensa que, adorando a diversão proporcionada pelos deslizes de lógica e de lingüística dos poderosos, esquece seu papel de questionar seus entrevistados. Do alto da nossa arrogância de conhecedores da gramática e da construção de frases, tendemos a subestimar todo mundo que não domine palavras. E tendemos a subestimar o conteúdo dessas frases mal construídas. Mas essas pessoas, com suas palavras erradas, têm poder de fazer leis e mudar a nossa vida.

Em nome da piada, perdemos o senso profissional. Quando, por exemplo, o deputado disse ‘tenho vários exemplos de mulheres que são felizes com seus filhos, mesmo que tenham sido resultado de um acidente horroroso’, ninguém lembrou de perguntar se o estupro é assim uma coisa tão banal. E, se é banal, por que ele se diz a favor de punições severas?

O deputado foi contraditório – mas isso até parece ser parte do apelo que ele exerce sobre a imprensa. Mais contraditórios foram os entrevistadores, que deixaram passar em branco todos os deslizes cometidos durante a sabatina.

E a própria Folha, que abriu caminho para o debate, parece ter se contentado, ao longo da semana, com a repercussão da sabatina. A entrevista deu o que falar e, com isso, cumpriu sua função.

Enquanto a Folha se satisfazia com a sabatina e os deslizes do deputado, seu concorrente tratou o assunto com a seriedade que ele exige, ao publicar, no sábado (dia 7), os resultados de pesquisa do IBGE sobre maternidade.

Exemplo de sobriedade

Sem dar opinião, o jornal O Estado de S. Paulo conseguiu fazer um verdadeiro editorial sobre a questão da natalidade no país, ao mostrar os resultados da pesquisa.

‘O número de meninas de 10 a 14 anos que tiveram filhos pela primeira vez em 2000 quase dobrou em relação a 1991. Foram 20.632 crianças e adolescentes estreando na condição de mães. Mais alarmante é o fato de que outras 2.502 meninas já tinham filhos naquele ano, quando tiveram outro bebê. No grupo de 10 a 14 anos, aumentou 93,7% o número de mães iniciantes. Entre as jovens de 15 a 19 anos, o aumento foi de 41,5% na década de 90. Do total de 1,3 milhão de mulheres que tiveram o primeiro filho em 2000, 38,6% tinham entre 10 e 19 anos.’ (O Estado de S. Paulo, 7/5/05)

A pesquisa continua:

‘As mães adolescentes são em geral pobres, com baixa escolaridade e nem sempre contam com a presença dos pais dos bebês. No caso das mães jovens de baixa renda, a maioria interrompe os estudos e não volta mais à escola, No caso das mais ricas, cria-se um aparato para cuidar do filho e os cuidados com a criança são divididos na família’.

Onde estarão esses bebês pobres daqui a 10 anos? Na Febem?

A pesquisa, que conclui dizendo que em 2000 o número de mães solteiras subiu para 16,37%, contra 2,7% em 1970, resultado da gravidez precoce, poderia ter sido uma bela fonte de pesquisa para os jornalistas que entrevistaram o deputado Severino. Quem sabe, com esses dados em mãos, os entrevistadores percebessem que tinham uma oportunidade única para discutir com uma autoridade o grave problema da gravidez na adolescência, em vez de ficar buscando aprofundar as piadas. Piadas que podem ser engraçadas, mas não justificam o salário de ninguém, a não ser dos humoristas.

******

Jornalista