Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Peroba neles, mas em rede nacional

Dois milênios depois de um judeu subversivo criticar os fariseus de seu tempo em plena sanguinolência do Império Romano, observamos que todo aquele sistema corrompido, ainda amador à época, cresceu como uma erva daninha, se multiplicou, expandiu seu alcance e agora está estabelecido, disfarçado sob a forma de democracia e justiça. No Brasil, esse modelo é abundante e protege uma plêiade de representantes da nossa sociedade que ocupam cargos públicos, fazem o que fazem e assim continuarão, certos da impunidade garantida pelo Direito. Há juízes e liminares disponíveis para todo e qualquer criminoso que queira continuar mantendo essa condição, livre, leve e solto. Se a totalidade desse aparato legal é lastro para a sobrevivência desses párias, mais do que nunca, a grande personagem deste século, a mídia, tem a obrigação de expor as vísceras podres desses múltiplos órgãos falidos.

E aí entra a imprensa, que alterna bons e maus momentos, quando o clamor dos escândalos obriga qualquer um a reportar o caso de algum boi-de-piranha infeliz. Uma recomendação de João registrada em Apocalipse repetidas vezes, cai bem aos repórteres, editores, diretores de jornalismo e afins: ‘Quem tem ouvidos para ouvir, ouça.’ Mas ouvir o que? Ouvir que um programa predominantemente de humor como o Custe o Que Custar (CQC), com profissionais vindos de experiências desvinculadas do jornalismo oficial, tomou para si o papel da vigilância, investigação e cobrança pra cima desses funcionários públicos e políticos exemplares, por meio do quadro Proteste Já.

Repercussão insignificante

Barueri foi literalmente sorteada em matéria divulgada no programa, em março. Rubens Furlan, o prefeito, um digno cidadão, diante das evidências do desvio de uma TV de LCD doada pelo próprio CQC – que deveria ter ido para uma escola e foi parar na casa de uma funcionária –, mostrou com escancarada transparência a alma psíquica do fariseu moderno no Brasil. Simplesmente xingou inúmeras vezes, diante das câmeras, os repórteres do programa de babacas, palhaços, tontos, debochados, ironizou o ‘medo’ que ele tinha deles e ainda saiu com essa: ‘Lutei muito pela redemocratização do país para que vocês pudessem fazer as besteiras que vocês fazem.’

Mostrar que meia dúzia de funcionários da Secretaria de Educação do município, bem como o secretário Celso Furlan, irmão do prefeito nervosinho, não tinham como justificar o desvio da TV e inventaram uma esfarrapadíssima desculpa que envolve até um profissional chamado ‘sintonizador de TVs’ era a besteira que o programa fez. Rubens Furlan não xingou o programa, xingou, sim, o povo, as pessoas, os eleitores, o público, o telespectador, o Brasil inteiro, em rede nacional, na cara de todo mundo. Essa tranquilidade ao expor sua real condição sem constrangimento só foi possível porque o cara-de-pau está amparado pelo Direito. Ele sabe que nada vai acontecer com ele e nem ninguém por causa de desvio da TV, um fato irrelevante, mas bem representativo da desonestidade e corrupção que acontece em âmbitos mais graves. Diante dos absurdos que estava ouvindo, o repórter Danilo Gentili fiou lá, desconcertado. O que ele podia fazer com um caso perdido daqueles? Mais do que expor a todo o Brasil? Xingar de volta? Chamar a polícia? Talvez, no impulso, poderia ter, sei lá, urinado então no prefeito (!?). O programa, que chegou a ser impedido pela ‘Justiça’ de ser veiculado durante uma semana, foi apresentado com enorme alvoroço por parte da equipe da Band, mas a repercussão na mídia em geral foi comparável ao insignificante destaque dado pela Globo no caso de estupro de uma menor envolvendo o filho de um diretor da RBS em Florianópolis, filiada à emissora carioca. Ou seja, destaque nenhum.

Um exército de Varelas

Foi-se o tempo em que uma capa de revista, uma matéria bem escrita no jornal, cheia de trechos de grampos, entrevistas, delações e fotos, eram suficientes para enquadrar alguém, dando início a um processo de investigação ou algo que o valha. É preciso que existam milhares de CQCs por aí, à solta, em TV aberta, andando com suas câmeras em Brasília, em pequenas e grandes cidades, aterrorizando os corruptos do povo. Uma vez por semana, num Fantástico, e olhe lá (quando não resolvem gastar o programa todo com Fiuk entrevistando adolescentes desinteressantes) ou num CQC de segunda-feira, é muito pouco para iniciar uma cultura: ‘Não sejamos corruptos pois podemos estar sendo televisionados.’

A imprensa ainda não percebeu que é preciso martelar todos os dias casos como esses de Barueri, deixando que as ações deles mesmos os humilhem publicamente. Que cresça essa tendência na programação da TV brasileira, que o Marcelo Tas, já fazendo escola, consiga recriar um exército de seu antigo personagem repórter Ernesto Varela, precisamos dele cada vez mais!