Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Pérolas do jornalismo cultural

Sou jornalista e trabalho há 10 anos como assessora de imprensa. Gostaria de expressar minha tristeza em ver o quanto a qualidade dos profissionais que trabalham na imprensa vem caindo vertiginosamente. Não quero me referir às condições de trabalho – que são cada vez piores –, nem à formação acadêmica, cuja mediocridade potencializou-se nos últimos anos com as chamadas ‘fábricas de diplomas’.

Quero chamar a atenção para aquele profissional específico, que conseguiu lutar contra as adversidades para obter um lugar ao sol e foi ‘premiado’ com um emprego em veículo de grande circulação – aliás, um dos maiores do país – e, mesmo assim, não consegue articulação suficiente para escrever um simples texto sobre uma peça de teatro. Esse profissional, que certamente passou por um crivo seletivo rígido (afinal, a concorrência é igualmente absurda), sequer consegue perceber as sutilezas da ferramenta que utiliza no seu ofício, e confunde tudo, deixando o leitor sem entender, afinal, sobre o que está falando.

Peço que leiam a seguinte matéria, verdadeira pérola do descuido, veiculada no dia 8 no Globo Online, providencialmente sem assinatura do/a autor/a:

08/11/2005 – 16h29m

‘A farsa’ leva a polêmica gay ao teatro

Globo Online

RIO – Uma história provocante. É isso que os espectadores podem esperar de ‘A farsa’, escrita pelo alemão Botho Strauss, que estréia nesta quarta-feira no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), do Rio de Janeiro.

A montagem chegou ao Brasil pelas mãos do diretor e ator Caco Coelho (de ‘A tempestade’, ‘As fenícias’ e ‘Os sete gatinhos’), que se encantou com a peça ao assisti-la em uma viagem à Alemanha. Profundo conhecedor de Nelson Rodrigues, Caco diz que os dois têm em comum as situações absurdas.

– É um realismo com horror à realidade, o absurdo prevalece – conta o autor.

Outro ponto de interseção entre as obras de Rodrigues e Strauss é o clima de sensualidade. ‘A farsa’ é a história de um casal de músicos com o relacionamento em crise através de metáforas, vivido no palco por Mariana Terra e Charles Asevedo. A esposa busca orientação com um casal de lésbicas, interpretadas por Luísa Thiré e Isabel Guerón (conhecida no cinema pelo papel sensual em ‘Bufo & Spallanzani’), que protagonizam cenas bastante calientes no palco.

Para compor as personagens gays, as atrizes passaram por intensas aulas de box, basquete e balé para agüentar o ritmo frenético da montagem:

– A peça tem um ritmo muito intenso, tantos nas brigas como nas cenas de amor. Minha personagem e a da Isabel se amam e por isso se beijam e fazem sexo, é algo natural – diz Luísa, neta de Tônia Carreiro e filha de Cécil Thiré.

Sobre a reação do público às cenas mais ousadas, Luísa acha que será tranqüila:

– Infelizmente nossa sociedade é machista. Como é uma cena entre mulheres, é mais fácil o público aceitar, já teve beijos entre meninas até na novela ‘Senhora do destino’!

A peça transcorre dentro de uma caixa, no formato de um ringue, disposta no centro da sala de espetáculos, como referência ao espaço do inconsciente. No local, os personagens experimentam, despudoradamente, diversas máscaras sociais, fantasiando ser quem não são e invertendo papéis.

– O público faz parte do cenário. Ele observa, como um verdadeiro voyeur, a peça por uma fresta na parte inferior da caixa – diz o diretor Caco Coelho.

A FARSA Teatro III do CCBB: Rua 1º de Março 66, Centro.Tel.: 3808-2020. De 9 de novembro a 23 de dezembro, de quarta-feira a domingo, às 19h. Ingressos R$ 10 e R$ 5 (meia entrada).

Sobre ela, eu pergunto:

1) Em primeiro lugar, onde está a ‘polêmica gay’? Aliás, o que é uma ‘polêmica gay’? Um beijo entre duas mulheres? Não seria mais claro dizer ‘um beijo gay’? Ou ‘um polêmico beijo gay’? E onde está a polêmica? Na suposta não-aceitação de um público machista (os verbos estão no futuro: ‘Sobre a reação do público às cenas mais ousadas, Luísa acha que será tranqüila’). Ora, se a reação será tranqüila, onde está a polêmica? Na cabeça do repórter, ao que parece (ou do assessor de imprensa esperto que usou este ‘gancho’ para vender a pauta, tirando proveito da ‘polêmica’ do beijo gay não concretizado da novela).

2) O/a autor/a oculto/a escreveu a seguinte sinopse:

‘A farsa’ é a história de um casal de músicos com o relacionamento em crise através de metáforas, vivido no palco por Mariana Terra e Charles Asevedo.

O que seria um ‘relacionamento em crise através de metáforas’? Imagino que o nome Asevedo (normalmente com ‘z’) foi checado, já que Luisa e Cecil ganharam um acento que não têm. E a Tônia mudou de família: virou Carreiro.

3) A descrição do trabalho das atrizes deixou-me mais uma dúvida:

Para compor as personagens gays, as atrizes passaram por intensas aulas de box, basquete e balé para agüentar o ritmo frenético da montagem.

O que seriam aulas de ‘box’? Será que as duas, para interpretarem um casal gay, ficaram dentro de um box, tomando banho juntas? Ou seriam aulas de boxe? Agora eu já começo a entender onde está a polêmica prometida no título.

4) A despeito do que indica o título, a expectativa dos atores não é a de criar polêmica, pois, como afirma Luisa Thiré na citação do/a repórter oculto/a:

– Infelizmente nossa sociedade é machista. Como é uma cena entre mulheres, é mais fácil o público aceitar, já teve beijos entre meninas até na novela ‘Senhora do destino’!

Se a sociedade machista aceita o beijo entre mulheres numa boa, onde está a polêmica? Acho que uma polêmica necessariamente tem dois pólos divergentes, não? Se todos concordam, está tudo ótimo e o título deveria ser trocado.

5) Definitivamente, eu não entendi como é o cenário desta peça. A descrição é:

A peça transcorre dentro de uma caixa, no formato de um ringue, disposta no centro da sala de espetáculos, como referência ao espaço do inconsciente.

A caixa pode ter vários formatos – pode ser redonda, quadrada, triangular etc. Um ringue, em geral, é quadrado e aberto. O que é uma caixa em formato de um ringue? Uma caixa aberta? Uma caixa que dá a idéia de um ringue? Mas a caixa não é aberta, porque o texto diz:

– O público faz parte do cenário. Ele observa, como um verdadeiro voyeur, a peça por uma fresta na parte inferior da caixa – diz o diretor Caco Coelho.

Se o público observa a peça por uma fresta na parte inferior da caixa, então a caixa é fechada, certo? Senão, por que seria necessário que houvesse uma fresta em uma caixa aberta?

A definição de cenário

Se o público faz parte do cenário, ele fica sentado em cima do palco, observando a peça por uma fresta? E se ele senta nas cadeiras da platéia, eu imagino que a pessoa que senta na última fila precise levar binóculos para enxergar pela tal fresta, a não ser que seja uma fresta imensa, ou que as cenas que se passam dentro da caixa são transmitidas por um telão, simultaneamente, de modo que todos possam observar pela fresta.

Bem, finalmente, fiquei sem saber se a peça se passa dentro de um ringue de luta ou de uma caixa que passa a idéia de um ringue. Também não consegui descobrir se o espectador está dentro ou fora do cenário e, estando dentro, se ele está em cima do palco, ao lado da caixa, observando as atrizes por frestas, ou se está sentado na platéia e, neste caso, não está no cenário.

Como eu nunca escrevi sobre teatro quando trabalhei como repórter, resolvi dar uma checada no Aurélio a definição de cenário. Ele diz: ‘Teat. Conjunto dos diversos materiais e efeitos cênicos (telões, bambolinas, bastidores, móveis, luzes, formas e cores) que serve para criar a realidade visual ou a atmosfera dos locais onde decorre a ação dramática; cena, dispositivo cênico’. Nenhuma referência ao público, nada. Mas na peça, o público faz parte do cenário. Estaria aí a polêmica? Ou é daí o título da peça?

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Jornalista