Decisões cruciais para a vida de centenas de famílias têm prazo de validade de milésimos de segundos. As tragédias aéreas são as mais visíveis representações disso. Há dez anos, um reverso foi acionado acidentalmente durante a decolagem de um Fokker 100 e, por um imperceptível instante, o piloto, entre milhares de opções, não soube que decisão tomar. Em 20 segundos, morreram 100 pessoas. Agora, outro reverso não estava funcionando durante o pouso de um Airbus A320 e, ao posicionar dois manetes assimétricos, o piloto pode ter se equivocado durante o mesmo breve instante. Nos próximos segundos, morreram outros 200.
São decisões instantâneas, impostas por situações muito difíceis de prever. Exatamente o oposto do que acontece, por exemplo, com a classe política. Políticos, como pilotos, têm nas mãos os destinos de muitos seres humanos. Mas, ao contrário dos pilotos, parlamentares têm todo o tempo do mundo para pensar – nenhum estímulo imprevisível que exija a tomada de decisões. Costumam, inversamente, construir tais estímulos – motivados por uma gama de fatores que pode ir do desejo de servir à nação até o de servir a seus próprios interesses.
O fascínio de ser leviano
Essa não é um prerrogativa de pilotos, mas pode ser a de quem vive às custas deles. Nos últimos anos, por exemplo, a Infraero acumulou mais de 100 processos no TCU, a maioria por improbidade administrativa – um eufemismo para desvio de dinheiro. O senador Carlos Wilson, que presidia a empresa durante a maior parte desse tempo, teve bem mais do que a fração de segundo dada aos pilotos que pousam e decolam nos aeroportos brasileiros, para tomar cada uma das decisões que levaram a essas denúncias. Seu colega Renan Calheiros teve um tempão para pensar antes de se envolver em cada um dos episódios pelos quais está sendo denunciado – não só pela Veja, mas desde a época em que a TAM descia em Congonhas com os Fokker 50 movidos a hélice.
A construção dos estímulos que não nascem do acaso, mas da firme determinação de criá-los, passa até por situações renitentemente prosaicas, como rixas e pequenas vinganças. Às vezes, essa estranha sensação – a de ser o arquiteto do destino de tanta gente –, aliada à certeza da impunidade (que vai na direção oposta à do homem que está no comando de um jato de passageiros), cria a imagem que Chaplin tão genialmente retratou na clássica seqüência de O Grande Ditador, em que Hitler se diverte jogando para o alto um globo terrestre.
Não é preciso matar milhões de pessoas para isso. A representação do fascínio pela possibilidade de ser leviano na interferência sobre a vida de seus semelhantes está contida em atos pequenos, pueris, que às vezes passam despercebidos – e tão mais despercebidos passarão quanto menos forem cobrados pela mídia.
Briguinha particular
Um magnífico exemplo é a decisão do prefeito do Rio, César Maia, de mandar fechar os postos de gasolina da orla marítima da cidade. Os motoristas de Copacabana terão que se deslocar a outro bairro para reabastecer. Não parece muita coisa. Mas isso não é tudo. A orla da Zona Sul, um dos alvos preferenciais dos assaltantes da cidade, vai ficar ainda mais insegura. O que vai acontecer com os espaços onde hoje estão os postos? Segundo o prefeito, serão reurbanizados pelo escritório Burle Marx. Só que tal projeto nem sequer começou a ser negociado. Tais espaços são hoje perfeitamente integrados à bela paisagem da orla do Rio. A partir de 23 de setembro, por imposição da prefeitura do Rio, eles se transformarão à noite em viveiros de habitantes de rua, e durante o dia, em estacionamentos ilegais controlados por flanelinhas geralmente sob o controle do banditismo. Isso começa a ser alguma coisa.
O prefeito justifica sua ação pelos ‘danos ambientais’ causados por tais postos. Pode falar esse tipo de tolice com todo o tempo para pensar que um piloto não tem na hora de tocar o solo a 250 km por hora. Copacabana tem uma das maiores densidades populacionais do planeta e não é o lugar mais adequado para se plantar postos de gasolina na porta de entrada de prédios comerciais. Na verdade, é difícil encontrar no mundo (com a possível exceção do perímetro urbano de Las Vegas) um lugar movimentado que seja mais adequado para se montar um posto de gasolina do que no calçadão central da orla do Rio de Janeiro.
O prefeito age, como se sabe, em função de uma rixa com a Petrobras – sobre a qual há muitas versões, nenhuma abonadora ao seu espírito público. Toca sua briguinha particular sem se importar com a vida das pessoas que lhe deram o emprego. Cria situações grotescas, alimenta picuinhas. Brinca com seu globinho terrestre. Tem o tempo para azucrinar seus semelhantes que os pilotos não ganham para salvar suas vidas.
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Jornalista