Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Pirataria nos filmes dos outros é refresco

O secretário-executivo do Ministério da Justiça, Luis Paulo Barreto, faz bem em estar preocupado com as circunstâncias da pirataria de Tropa de Elite, conforme relata a repórter Silvana Arantes, da Folha de S.Paulo (‘Pirataria do filme `Tropa de Elite´ preocupa o governo’, 29/8). O filme, dirigido por José Padilha (autor do documentário Ônibus 174), tinha lançamento previsto para novembro e estava escalado para abrir o Festival do Rio, em 20 de setembro. O lançamento foi antecipado para outubro, mas há várias semanas ele já pode ser comprado por 5 a 8 reais nos camelôs das principais capitais brasileiras. A pirataria está causando grandes danos a toda indústria do audiovisual (estrangeira ou brasileira) e tem um campo fértil para avançar no universo digital.


Barreto enxerga ‘ineditismo’ na grande antecedência com que o filme foi pirateado. Isso não é inteiramente correto, mas também não faz diferença. Muitos filmes norte-americanos são comercializados pelos piratas meses antes de seus lançamentos e a responsabilidade pela venda ilegal é freqüentemente – como aconteceu agora – atribuída a um técnico do estúdio de finalização (hoje, nas sessões de pré-lançamento de grandes produtos, até os críticos são revistados). O master de Tropa de Elite foi vendido por 5 mil reais para a quadrilha de piratas. Nas bilheterias, o desfaturamento do filme pode ser dez mil vezes maior.


A grande questão é que a pirataria deixou de ser um caso de polícia para se tornar um problema filosófico. A premissa é análoga à de que assaltar um banco é um delito menor do que abrir um banco. A má notícia é que a questão é geralmente discutida ao nível da filosofia de botequim. Uma vez criada, a obra não pode ter donos. Vai ser difícil ir muito longe dessa maneira.


Sob pressão


É verdade, por exemplo, que desde o Napster a lógica de venda do produto audiovisual passou por transformações forçadas. Muitas dessas transformações deixaram a nu não apenas a caducidade dos mecanismos tradicionais de venda de CDs (o atrelamento da venda de uma faixa a dez outras, por exemplo), mas também expuseram o preço exageradamente alto com que esses produtos eram ofertados ao consumidor.


A partir do momento em que o P2P tornou fácil compartilhar arquivos MP3, toda a lógica da venda de música teve que mudar. Isso foi um avanço, não um retrocesso. Mas gerou situações bizarras. O consumidor que paga para baixar a música em uma mídia deixou de ter o direito de ouvi-la em outra.


Formas heterodoxas de lidar com os direitos autorais, representadas por ações tomadas por entidades como o Creative Commons, representaram igualmente um avanço, porque relativizaram os direitos dos detentores da propriedade intelectual. Isso é bom. Mas daí a acreditar que toda criação intelectual seja propriedade do povo vai uma grande distância. Seria até bom, caso se descobrissem maneiras de viabilizar a produção. Tal coisa até hoje não foi feita. As plataformas digitais fazem muita coisa, mas não operam milagres. O conceito de direito autoral livre é moderno, mas a equação financeira não tem como deixar de ser conservadora: se não houver remuneração pela produção cultural, a produção cultural cessará de existir.


Lá na frente, isso vai impor o exame mais consistente da aplicação do DRM (digital rights management) nas plataformas de TV digital terrestre que estão em implantação no Brasil. Tanto as emissoras quanto os grandes produtores internacionais de conteúdo põem o DRM como uma exigência. Setores sociais sustentam que impedir o espectador de gravar o que está vendo é inconstitucional, porque caracteriza censura e impedimento do consumidor utilizar algo que comprou.


O que parece birra pode ser também reação. A má imagem das distribuidoras norte-americanas de cinema não se dá por acaso. Elas costumam ser arrogantes e atuam no Brasil sob forte pressão da matriz (que volta e meia admite, com invejável desfaçatez, estar em busca de 100% do mercado brasileiro, não se contentando com os 85% de que dispõem). Recentemente, três blockbusters americanos (Homem Aranha 3, Shreck 3 e Piratas do Caribe 3) ocuparam 80% das salas brasileiras. Nos EUA, os mesmos títulos não chegaram a 40% das telas.


Mau exemplo


Muitos dos principais executivos dessas multinacionais são egressos da Embrafilme e sabem o que representa para o cinema brasileiro tentar ocupar o seu próprio mercado. São profissionais massacrados todos os dias por seus chefes para esmagar o mercado dos outros. Quando se aposentarem, poderiam deixar como legado à sociedade brasileira o relato de suas experiências. A publicação dos e-mails que recebem todas as manhãs já seria de bom tamanho.


Essa arrogância, contudo, não justifica a tentativa de desqualificar a propriedade intelectual. Na cadeia de valor da produção audiovisual, há fundamentos que não dependem de juízos morais. Uma coisa é um setor pretender o monopólio do mercado. Outra, bem diferente, é reconhecer o fato de que, sem remuneração, não há produto.


Há poucas semanas, as majors (sete maiores distribuidoras norte-americanas de filmes) promoveram uma campanha antipirataria. A campanha era tão primária que na verdade estimulava a prática da exploração ilegal do conteúdo. Na época do general Ernesto Geisel (1974-1979), uma campanha antidroga exibia viciados bonitos e não-drogados feios. Deve ter colaborado para vender muita maconha. As majors prometem agora uma nova campanha, focada de novo no usuário. Se repetirem a dose, o espectador vai se sentir um idiota cada vez que se aproximar de uma bilheteria de cinema.


Retórica perigosa


Evoluções tecnológicas não retrocedem: têm que ser assimiladas, da mesma maneira como precisam ser entendidos os novos modelos de negócio que elas geram. Não passa por muitas cabeças inteligentes deletar para sempre sites de compartilhamento. Muito mais pueril, entretanto, é preconizar que a criação intelectual a ninguém pertence.


A indústria de equipamentos eletrônicos está pedindo ao governo que pelo menos autorize os aparelhos digitais a estarem aptos a incorporar o DRM, caso isso seja permitido. Não é querer demais. Autorizar indiscriminadamente a copiagem de programas é dar liberdade ao espectador para vê-los no momento em que desejar. Mas também a duplicá-los indiscriminadamente com a qualidade que é mantida quando se duplica o que é digital.


O desfaturamento de Tropa de Elite pode ser relativizado quando se leva em conta que, no Brasil, a produção cinematográfica se dá através de recursos de isenção fiscal. O Ministério da Justiça tem não apenas que se espantar, mas principalmente agir quando vê que o camelô da esquina está vendendo um filme que sequer estreou na sua primeira janela. Mas o debate sobre o DRM e a possibilidade de copiagem do que vier ao ar pela TV digital tem que abandonar a perigosa retórica de diretórios acadêmicos. É muito bom que todo mundo possa fazer o que quiser com o produto audiovisual. Mas é melhor ainda que exista produto audiovisual para que cada um faça com ele o que quiser.

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Jornalista e diretor de TV