‘O que o jornalista deve fazer quando, em uma cobertura, vê uma pessoa em perigo: ajuda-a ou se mantém centrado no trabalho? Se ele for repórter-fotográfico, prioriza a fotografia ou acode alguém em dificuldade, perdendo o momento de gravar a imagem? Jornalista deve interferir na realidade ou apenas reportar os fatos que está cobrindo? Se o jornalista não depara cotidianamente com tais escolhas, no decorrer de sua vida profissional, pelo menos uma vez, é provável que haverá de se haver com elas. E, como sempre escrevo nesta coluna, nunca encontrará resposta fácil para os dilemas com os quais vai se defrontar.
Com o caderno Documento BR, o jornal iniciou uma série de reportagens sobre a exploração sexual de crianças e adolescentes nas rodovias federais, que passam pelo Ceará. O suplemento, encartado na edição de domingo passado, é de forte impacto, principalmente a entrevista com uma adolescente, de 16 anos, que iniciou suas desventuras nas ruas aos 11 anos de idade. Em seu depoimento, a menina diz ter sido obrigada a vender drogas para um delegado, uma delegada e um inspetor da Polícia Civil. (Ela revela todos os nomes, suprimidos na edição da entrevista.)
Antes da publicação da reportagem, os repórteres que estão fazendo a cobertura, procuraram a Corregedoria da Polícia Civil, entregaram os dados levantados, incluindo o nome dos policiais supostamente envolvidos na atividade criminosa, e pediram proteção para a adolescente, inscrevendo-a no programa federal de proteção à testemunha. Ainda sob o impacto das situações degradantes que testemunharam, também passaram a fazer o que um deles, Demitri Túlio, chama de ‘jornalismo de proposição’. Procuraram a Assembléia Legislativa, promotores de Justiça e entidades de defesa da criança e do adolescente, propondo e cobrando ações para enfrentar o problema, algumas das quais saíram de forma imediata. A Assembléia Legislativa vai destinar, por meio de convênios, R$ 60 mil para a produção de um documentário sobre o assunto e sua TV passará a ter uma hora diária da programação para abordar o tema. Também serão produzidos 40 programas de rádio a serem enviados a 60 emissoras do Estado. Com base no que foi apurado, o procurador Geral da Justiça, Manuel Oliveira, escreveu um documento recomendando aos promotores das comarcas dos 184 municípios que exigissem das respectivas prefeituras o diagnóstico da situação da infância e adolescência em seus municípios. A União dos Vereadores do Ceará e prefeitos de algumas cidades também anunciaram ações para enfrentar a situação.
ÉTICA
A meu pedido, Demitri procura conceituar o modo como ele e seus colegas de cobertura vêm encarando o trabalho: ‘Não nos contentamos apenas com a investigação e a denúncia. Fomos cobrar mais de perto soluções ou iniciativas para a mudança de cenário. No jornalismo, nada pode ser fechado, preso a fórmulas prontas. Dependendo do caso ou da circunstância refazemos caminhos. Mas a cobertura é isenta e eticamente correta; observamos, sempre, a questão ética’.
Demitri ainda diz que tudo o que vem sendo prometido pelas autoridades será acompanhado: ‘Vamos cobrar para que as coisas se materializem em ações’. E finaliza fazendo uma profissão de fé: ‘Fomos além da notícia. Fomos além da cobertura jornalística e da investigação pura e simples. Não ficamos na denúncia pela denúncia. Entendo, isso é opinião particular, que temos de lutar por uma sociedade mais justa. E minha trincheira é o jornalismo’.
Um dos paradigmas do jornalismo brasileiro, Cláudio Abramo (1923-1987), dizia que a ética dele como jornalista era a mesma que ele tinha como cidadão. Vejam o que ele escreve no livro A Regra do Jogo: ‘Sou jornalista, mas gosto mesmo é de marcenaria. Gosto de fazer móveis, cadeiras, e minha ética como marceneiro é igual à minha ética como jornalista – não tenho duas. (…) O cidadão não pode trair a palavra dada, não pode abusar da confiança do outro, não pode mentir. (…) O jornalista não tem ética própria. Isso é um mito. A ética do jornalista é a ética do cidadão. O que é ruim para o cidadão é ruim para o jornalista.’ Suspeito ser algo parecido o que Demitri queira nos dizer, ainda que seja preciso lembrar, que os jornalistas, como várias outras profissões, têm um código de ética próprio, para dar conta das especificidades do ofício.
A ombudsman emérita do O POVO, Adísia Sá, professora de jornalismo, inclusive da disciplina de Ética, explica o que ela chama de ‘filosofia da informação’: a existência do fato, a sua confirmação pelo repórter, e a publicação do que foi apurado. ‘Aí se encerra o papel do jornalista’, diz ela. Se o jornalista entender que alguma providência deva ser tomada em relação ao fato noticiado, Adísia defende que o local devido para expô-la seria o próprio jornal, em espaço destinado à opinião. Quanto à questão específica da adolescente que ficaria sob risco com a publicação da reportagem, a professora avalia que os repórteres agiram de forma ‘absolutamente correta’ ao providenciarem proteção para ela, pois ao divulgarem as suas declarações, a adolescente estaria sujeita a possível vingança por parte dos denunciados.
REPORTAGEM
O caderno Documento BR foi produzido pelos jornalistas Cláudio Ribeiro, Luiz Henrique Campos, Felipe Araújo, Demitri Túlio e o repórter-fotográfico Fco Fontenele. Com o motorista Valdir Gomes, eles percorreram mais de quatro mil quilômetros nas rodovias federais no Ceará, mapeando mais de 50 locais onde o crime de exploração sexual contra crianças e adolescentes acontece com mais freqüência. O jornal continua a acompanhar o assunto.
O suplemento é resultado de um projeto vencedor do Concurso Tim Lopes de Investigação Jornalística, organizado pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi) e pelo Instituto WCF-Brasil. Os premiados receberam financiamento para produzir a pauta sobre o abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes. Dão apoio ao projeto o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), Organização Internacional do Trabalho (OIT), Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).’