O assunto do momento é a crise. A crise econômica e financeira. Enquanto ela se acelera, o presidente Lula promete que dias melhores virão. É agraciado pela mídia, que em sua maioria apenas reproduz os seus discursos. Mas ele não se importa muito com a perspectiva do caos. Vai ao 25º Salão Internacional do Automóvel, em São Paulo, e, sorridente, posa para fotos em carros de luxo. Não dá para saber se ele é bom ao volante, porém suas palavras produzem efeito positivo há muitos anos. Ao discursar, ele se mostra indignado com os boatos de uma provável crise que ronda o país e exalta as pessoas a consumir. ‘Acho que as pessoas têm que continuar comprando.’
Lula percorre o Salão do Automóvel acompanhado pela ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, pelo governador paulista José Serra (PSDB) e pelo prefeito reeleito Gilberto Kassab (DEM). Estão todos, aparentemente, felizes e de olho nas próximas eleições para presidente da República. Afinal, no mundo moderno tempo não é só dinheiro, mas aquilo que exige atitudes momentâneas, inteligentes e hábeis. Nesse mundo que transitou da modernidade sólida para a líquida, como a define o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, em Modernidade Líquida, tudo é fluido e escorrega pelas mãos. Ou segue sobre rodas.
‘Direito de comprar seu carro’
Nesse aspecto, nada mudou com a passagem da modernidade pesada à leve. Mas a moldura foi preenchida com um novo conteúdo; mais precisamente, a busca da ‘proximidade das fontes da incerteza’ reduziu-se a um só objetivo – a instantaneidade. As pessoas que se movem e agem com maior rapidez, que mais se aproximam do momentâneo do movimento, são as pessoas que agora mandam. E são as pessoas que não podem se mover tão rápido – e, de modo ainda mais claro, a categoria das pessoas que não podem deixar seu lugar quando quiserem – as que obedecem (2000, p. 139).
Protegido pelas pesquisas favoráveis, o presidente Lula avisou, na quarta-feira, 29/10/2008, dia em que visitou o Salão do Automóvel, que encaminhou uma medida provisória ao Congresso Nacional para que o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal possam comprar ‘quantas carteiras forem necessárias’ de bancos de investimentos e, ‘sobretudo’, de empresas financeiras da própria indústria automobilística para que não falte crédito (Folha Online, 30/10/2008). O governo, mais uma vez, vai pôr a mão no bolso para ajudar os ricos, embora o discurso seja outro. ‘Porque não é possível que na hora que o pobre começa a ter acesso a um carro neste país apareça uma crise americana que atrapalhe o brasileiro a ter o direito de comprar o seu carro’, defende.
O peso do lixo e da vida
Diante dos problemas complexos trazidos pelo capitalismo e das economias fluidas do mundo moderno – principalmente no Brasil, com uma desigualdade social absurda entre as classes –, não dá para saber se o nosso presidente fala sério ou brinca. Parece que fala sério porque insiste na importância de cada pessoa comprar, consumir, para evitar uma crise que ainda não chegou, mas pode chegar. Ele quer evitar o pânico, mas o antecipa. Nada demais o pobre ter seu carro. Mas a questão é mais profunda. Não se pode pensar no destino de uma nação sob perspectivas tão simplistas. Todo cidadão, pela Constituição, deveria ter direitos iguais, acesso à saúde, à educação, à moradia, ao transporte de qualidade. Direito a ser feliz.
Os últimos presidentes brasileiros têm posturas semelhantes quando o assunto é a tal crise. Não medem esforços para ajudar banqueiros e companhia. A pergunta inquietante poderia ser: mas de que crise se fala? Aquela que afeta o pobre ou ameaça os muito ricos de perderem as vantagens? Nunca soube de um caso de um pequeno agricultor que, endividado, mobilizasse um presidente da República a criar medida provisória que o beneficiasse. Morreria à míngua porque seu papel na economia não é valorizado.
Alguns meses atrás, entrevistei Lourdes, uma mulher de 56 anos que há mais de vinte anos cata lixo numa região nobre de Campinas (SP). Ela recolhe, semanalmente, a média de uma tonelada de papelão, revistas, plástico e, algumas vezes, alumínio, que é o mais cotado no mercado do reciclável. Em tempos de vacas gordas, o quilo do material é vendido a 33 centavos; contudo, em tempos de vacas magras, como ela tem experimentado, cai para 16 centavos, o que reduz a renda mensal de 800 para 400 reais. Só de aluguel pelo terreno onde vive e abriga todo o lixo arrancado das ruas, ela paga 400 reais. Sobra lixo e faltam compradores. Ela não tem plano de saúde nem direito à aposentadoria. Ganhou uma hérnia na barriga de tanto carregar o peso do lixo e da vida.
‘Não se brinca com o sistema’
Nenhum político denunciaria a situação de Lourdes nem a de milhões de outros brasileiros, considerados não pobres, mas miseráveis, seres brutalizados pela falta de respeito à vida e ao que há de humano em nossa espécie. E se Lourdes ouvisse as palavras do presidente Lula e saísse por aí a comprar para evitar a crise futura e o pânico? Se ela fosse a uma concessionária para comprar um carro, haveria crédito para ela? O Banco do Brasil e a CEF estariam autorizados a fazer de tudo para ajudá-la em caso de dificuldade? Ela está incluída entre aqueles que o nosso presidente deseja ver sobre quatro rodas? Só que Lourdes não sonha com carro, apenas com uma casa própria que a tirasse do meio do lixo e onde pudesse envelhecer com dignidade.
Borbulham explicações econômicas para aquilo que os olhos teimam em não acreditar. Os ricos precisam ser socorridos! Segundo o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, em artigo publicado na CartaCapital (24/10/2008) intitulado ‘Não se pode brincar com o sistema’, a intervenção dos governos para impedir o colapso das instituições financeiras tem sua razão de ser. ‘Deixar o bicho à solta é grave irresponsabilidade’, diz ele, o que acarretaria, nos países periféricos, um ‘triste episódio de fuga da moeda local e caos monetário.’
‘Não há mais solução’
Em momentos de crise, de suposta crise ou de crise inventada, aparece de tudo. Integrantes da Teoria Unicista do Crescimento Econômico, ligados ao Instituto de Pesquisa Unicista, criado na década de 1970 pelo eslovaco Peter Belohlavek com o objetivo de auxiliar no desenvolvimento de estratégias para situações críticas, realizaram este mês seu nono congresso internacional e tentaram cooptar pesquisadores por e-mail. Um dos objetivos é usar a ontologia unicista do crescimento econômico para construir ciclos e contra-ciclos de crescimento, seja lá o que isso signifique, baseados na idéia ‘ação-pensamento-ação’ para tirar do limbo empresas e governos. Se já estão no nono congresso é porque a crise rende mesmo…
Seja como for, dá para imaginar o Brasil de Lula com todos os pobres motorizados. Eles não terão acesso à saúde nem à moradia, à educação, ao emprego, mas terão carros. E andarão motorizados e mais velozes em direção a que tipo de futuro? Em cenários de catastrofismo, o lema é ‘vamos viver o instante porque a tragédia está próxima. Não há mais solução. Tudo está perdido’. Então, como sugeriu o nosso presidente, vamos às compras para evitar o pânico, para afastar a crise. E depois, mandaremos a fatura para o presidente?
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Professora de Jornalismo e doutoranda em literatura na Faculdade de Educação da Unicamp, Campinas, SP