Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Por que a medicina deve se basear em evidências

Este Observatório da Imprensa publicou artigo do médico Paulo Rosembaum (‘Cursos de `humanização da medicina´‘) relativo à assim por ele denominada medicina integrativa. Curiosamente, deixou o mesmo de relacionar seu texto com a mídia; dessa maneira, ao menos me parece um pouco confuso escrever a respeito de um tema relacionado à saúde em site especificamente dedicado à imprensa.

Pois bem, embora haja essa falta de relação direta com a imprensa, pode-se argumentar que matérias de saúde sempre têm espaço na imprensa; jornalistas já citaram que uma boa matéria de capa sobre medicina em revista semanal vende mais que qualquer grande escândalo político. Dessa maneira, embora não apareça, há lógica em se falar sobre temas de saúde em espaço dedicado à imprensa.

Superado esse ponto, começam as falácias: o autor faz longa digressão sobre saúde e a anamnese e a relação médico-paciente, parecendo fazer crer que a homeopatia, especialmente, por supostamente valorizar esses aspectos, é muito mais resolutiva que a medicina dita tradicional, tecnológica, com uso de fármacos e procedimentos cirúrgicos, desumanizada até pelo pouco tempo que os médicos dispõem nos dias de hoje, por causa de baixos salários e consultas pagas de modo aviltante pelos planos de saúde.

Confundem-se aí aspectos reais relativos ao exercício da profissão médica pela maioria dos profissionais da área em nosso país com o método semiológico clássico de interrogar o paciente para obter as informações necessárias para formular um raciocínio, e a partir daí complementar tais dados com o exame físico – e, caso necessário, com exames complementares – para se chegar o mais próximo possível do correto diagnóstico.

Hipócrates introduziu, dentre várias outras normas basilares da Medicina, exatamente tirar a profissão do mundo espiritual e trazê-la para causas naturais, além de especificar a anamnese, o ouvir as queixas do paciente e complementá-las com questionamentos do médico, iniciar os procedimentos de diagnóstico e tratamento.

A dieta dos navegantes

Chega a ser chocante para qualquer médico razoavelmente bem formado nos dias de hoje sua afirmação de que felizmente se abandonou o engano que seria a medicina baseada em evidências. Aí as coisas passam a ser desinformativas, antiéticas e enganosas. Para que então serve a tal medicina baseada em evidências, que vamos abreviar por MBE, e o que é a mesma?

O conhecimento científico aumenta progressivamente. As pesquisas e publicações científicas idem. Calcula-se que nos dias de hoje, um médico, apenas em sua especialidade, precisaria ler cerca de 300 publicações científicas por dia (e apenas das revistas consideradas sérias) para se manter atualizado! Além de obviamente ser impossível na prática, trabalhos aparecerão contraditoriamente a outros. Como separar o joio do trigo?

Essa preocupação na realidade vem de um passado mais distante. O que é o método científico? Dou apenas um exemplo: por dois milênios os ‘achismos’ persistiram, mesclados à religiosidade e mesmo à ignorância. Não devemos esquecer que a Igreja Católica proibia as autópsias – nem a anatomia humana se conhecia adequadamente; médicos do Ocidente que quisessem aprender iam buscar conhecimentos entre os muçulmanos e os judeus. A presença moura na Espanha, por exemplo, foi uma luz para a ciência médica ocidental.

O exemplo é o seguinte: o poderoso Império Britânico, com suas centenas de embarcações, percorria e dominava os oceanos. Contudo, as tripulações morriam às pencas de escorbuto. Alterações de pele, ossos, dentes e o final como óbito. Um médico inglês resolveu se dedicar a questão, colocando perguntas não respondidas – hipóteses, portanto – e raciocínio para entender a questão.Após algumas observações, ficou claro para ele que os casos de escorbuto não ocorriam ou eram muito mais brandos nos marinheiros que se alimentavam de frutas cítricas.

Que fez ele, então? Dividiu a alimentação dos marujos em quatro categorias diferentes, uma apenas contendo cítricos. E após mostrar a enorme diferença para melhor nesse grupo, chegou à única conclusão lógica possível: alimentos cítricos consumidos evitavam o escorbuto, ao contrário dos demais. E nem de longe se sabia ainda o que era a vitamina C, carência da qual é a verdadeira causa da doença.

O que ele fez,talvez involuntariamente? Usou metodologia científica, estudo de grupos diferentes, e chegou a uma conclusão absolutamente correta. Mas a Coroa Britânica não deu muita atenção a esse estudo, apesar de amplamente divulgado à época, e só dois anos após a constatação da importância dos cítricos no escorbuto é que passou a ser obrigatória a mudança da dieta dos navegantes, eliminando um sério problema de saúde ocupacional…

Não se procurou explicações no além, nos búzios, no tarô ou nos dogmas religiosos: simplesmente usou-se a base do que até hoje é feito para saber causas de doenças, eficácia de medicamentos etc.

Saúde individual e coletiva

Voltemos aos dias de hoje: como é possível um médico ler 300 artigos por dia, e ainda separar o que é realmente útil do que não é? Vários profissionais passaram a lidar cada vez mais com essa questão, sendo o nome mais lembrado o de Cochrane, que a partir de 1979 começou a impor essa visão do estudo da medicina, a MBE. Em primeiro lugar, um trabalho científico, para ser válido, deve ter a pergunta inicial que se quer responder, ter um método racional e eticamente válido para se chegar a algum lugar, utilizar a metodologia estatística correta e, finalmente, concluir com o desfecho – que é a resposta à pergunta formulada.

Mas isso não bastou: com a pletora de pesquisas e publicações, algo tinha que ser feito para embasar o conhecimento médico: criaram-se então mecanismos para condensar informações: a padronização do método científico, para analisar pesquisas que pudessem ter resultados divergentes, mas metodologia comparável, e a análise conjunta de todos os trabalhos sobre um determinado assunto sob um sistema matemático especial, a metanálise. Dessa forma, a MBE nada mais é que trabalhos científicos padronizados, analisados conjuntamente por um método estatístico, que ao final das contas se denomina revisão sistemática. E isso poupa os médicos de terem que lidar com os tais 300 trabalhos diários: as revisões sistemáticas, com ou sem metanálise, e os consensos que as sociedades científicas das várias especialidades utilizam rotineiramente, levantam novas explicações, derrubam práticas antes consideradas intocáveis e assim por diante – provando, com método e ciência, o que se aproxima da verdade.

A frase tanto usado por médicos no passado – ‘…na minha experiência…’ – não tem mais lugar no dia de hoje. É a experiência do conjunto internacional de médicos, com o uso da ciência.

E a MBE não foi abandonada, como incrivelmente o autor ressaltou em seu texto: ela só faz crescer, com os Centros Cochrane disseminados pelo mundo, com pesquisadores falando os mais diversos idiomas, mas se entendendo por algo comum, talvez a linguagem do universo, que é a matemática.

E há mais: desde quando se abandonou a anamnese e o imprescindível contato e empatia entre médico e paciente? Questões conjunturais, político-econômicas, podem comprometer o exercício pleno da medicina como deve ser feita no Brasil: é apenas mais um exemplo a se somar às ignomínias observadas desde o descobrimento de nossa terra, cartorial, burocrática, pedante, que quase nada oferece a quem trabalha no SUS e a quem dele depende, e muitos psudo-planos de saúde tentam enganar usuários. Mas essa é uma questão bastante terrena e com soluções democráticas, que não dependem de ciência.

Mas os médicos que conseguem vencer tais barreiras conversam sim e bastante com seus pacientes, ouvem suas queixas, orientam seu raciocínio com essas informações para se chegar ao fluxograma mental que objetiva melhorar a saúde individual e coletiva. Desde quando a homeopatia, que apenas no Brasil é considerada especialidade médica, é a única proprietária desse sábio e antigo método? E como pode a mesma, e outras formas de ‘medicina integrativa’, ao afastar a metodologia científica, como a MBE, arvorar-se como forma de tratamento?

Única e verdadeira

Como relatado no início, matérias relativas à saúde são desejadas pelos leitores, telespectadores, internautas, e com toda razão, pois são os maiores interessados em seu próprio bem-estar. Mas aceita-se a expressão ‘medicina alternativa’. Ora, os povos indígenas da América do Sul, ou os egípcios e suas pirâmides, ou ainda os romanos e suas construções, há muito tempo já conseguiam produzir edificações que até hoje podemos observar – alguém se habilita a exercer ou mesmo a falar em ‘engenharia alternativa’?

Povos antigos de todas as regiões do planeta também sempre possuíram seus regimes legais. Nem é necessário dizer o quanto atulhada e lenta é a Justiça apenas no Brasil: alguém propõe uma ‘justiça alternativa’? Como a resposta obviamente é não, a medicina tem que conviver com ‘alternativas’, ‘integrativas’ ou sabe-se lá mais o quê. E esse foi um legado dos pais da homeopatia, voltando dois milênios, levando o que se considerava medicina com bases naturais, hipocráticas portanto, para o reino da magia, da religião.

Isso não quer dizer que médicos que exercem a profissão como assistência ao paciente ou que militam na pesquisa ao lado de outros profissionais de áreas correlatas, sejam donos da verdade. Apenas se quer estar cada vez mais perto da mesma,em uma área em que não há verdades absolutas.Retroceder é absurdo,é causar danos maiores aos portadores de alguma doença.E considerar que a questão é ideológica,como também postado pelo autor,é risível.

Médicos de verdade têm que saber o limite do possível nos dias de hoje, mas procurar pelo que seja mais acertado pelos seus pacientes, com o uso da MBE e outras formas de atualização continuada, e preservar a relação médico-paciente, princípio basilar da ética hipocrática, que é ao mesmo tempo informativa e fundamental no estabelecimento de diagnósticos, e humana, como compete a seres humanos psiquicamente balanceados.

À imprensa resta um trabalho complexo: se para os próprios médicos é complicado saber o que é certo e o que é duvidoso, para jornalistas as coisas são compreensivelmente mais complexas. Mas sabendo, por exemplo, que se está entrevistando alguém que usa a única e verdadeira medicina, pois não podem existir formas diferentes da mesma profissão, que lastreiam suas opiniões na MBE, certamente poderão levar a informação desejada pelos leitores e afins com a melhor acurácia possível.

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Médico, mestre em Neurologia pela Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ex-conselheiro e ex-diretor do Cremesp