O texto intitulado ‘O caso do Sr. D’, publicado pelo colunista da revista Veja Diogo Mainardi em 26 de junho de 2010, traz alguns equívocos sobre a tradição de psicologia chamada genericamente de behaviorismo ou psicologia comportamental. Mainardi faz a seguinte afirmação em seu texto: ‘Dunga só pode ser nosso B. F. Skinner. Ele faz com seus jogadores precisamente o mesmo que, nos primórdios do behaviorismo, B. F. Skinner fazia com os pombos e com os macacos de seu laboratório. Primeiro, prende-os numa gaiola. Segundo, isola-os de qualquer contato com o exterior. Terceiro, raciona seus alimentos. Quarto, condiciona seu comportamento administrando-lhes choques elétricos.’
Cabe lembrar que Dunga não é um behaviorista e, consequentemente, não é um especialista do comportamento. Ele é apenas alguém que, algumas vezes, usa desavisadamente a punição, procedimento que psicólogos comportamentais combatem veementemente.
O behaviorismo é uma filosofia que embasa a ciência empírica que estuda o comportamento dos organismos, sendo esta chamada de Análise do Comportamento ou Psicologia Comportamental. Behavioristas não criaram a punição (ou mesmo os choques elétricos) e seu fundador (B. F. Skinner) é o maior inimigo de práticas coercitivas ou punitivas. As instituições sociais criaram as punições, e não os behavioristas. Como cidadãos, observamos, consternados, métodos ‘disciplinadores’ em nossas relações econômicas, governamentais, educacionais, religiosas, entre outras. Todos nós estamos bem familiarizados com as práticas de nossa cultura, que apresenta consequências punitivas para pessoas que infringem as leis, tais como a não prestação de contas ao fisco, o não cumprimento de deveres cívicos, o desempenho insatisfatório em trabalhos escolares, ou qualquer ação que seja classificada como pecado ou erro.
Cidadãos dignos e atuantes
Os behavioristas, buscando meios de suprimir essas práticas e demonstrar seus efeitos perniciosos, pesquisam a punição com profundidade há mais de 60 anos, com robusta produção científica, denunciando veementemente as práticas coercitivas na sociedade. Mesmo em épocas de ditadura militar, analistas do comportamento não deixaram de se manifestar publicamente contra a prática da punição em nossa cultura. Maria Amélia Matos (em memória) foi uma das pessoas que o fizeram, em um artigo denominado ‘A ética no uso do controle aversivo’, de 1982.
Temos behavioristas no Brasil reconhecidos internacionalmente, trabalhando e buscando soluções para um vasto leque de problemas humanos, sem o uso de punição. No campo da saúde, desenvolvemos tecnologias de intervenção que melhoram a vida das pessoas que sofrem dos mais diversos distúrbios. Comumente tratamos dos efeitos maléficos provocados pela punição e ensinamos nossos clientes a como efetivamente enfrentá-la. Temos terapeutas comportamentais trabalhando com pessoas deprimidas, fóbicas, ansiosas. Trabalhamos também com crianças com problema de desenvolvimento dos mais diversos. O tratamento de maior eficácia para o autismo é reconhecidamente de orientação behaviorista.
Como cientistas também preocupados com as práticas educacionais, auxiliamos na formação de melhores professores e na educação de crianças para que estas venham a se tornar cidadãos dignos e atuantes em suas comunidades. Pessoas que saibam fazer escolhas e que não venham a causar sofrimentos a outros ou a si mesmo, usando, inadvertidamente, a mesma punição que aprenderam em ambientes sociais coercitivos.
Esclarecer dúvidas e dialogar
Muitos colegas na Psicologia Comportamental trabalham em empresas, no esporte ou no planejamento de políticas sociais mais humanas. B. F. Skinner, ao seu tempo, foi um humanitário e as causas ilustradas no livro Walden II (obra bem lembrada por Mainardi) são, por assim dizer, genuinamente humanitárias. Vale lembrar que em nenhum momento desta obra de ficção o autor propõe uma sociedade totalitária. Pelo contrário, sua proposta de sociedade defende o respeito à individualidade e à liberdade individual. Aliás, o mesmo Skinner defende que, se a sociedade em que vivemos não usasse tanta punição, nem precisaríamos criar um termo como a ‘liberdade’, já que ele seria um valor comum, e não um estado de exceção.
Em setembro próximo teremos o XIX Encontro Nacional da Associação Brasileira de Psicoterapia e Medicina Comportamental (ABPMC – www.abpmc.org.br), o maior fórum científico da área. Reunimos hoje mais de três mil pesquisadores, profissionais e alunos de graduação preocupados com a relevância social das nossas descobertas e com o rigor ético de nossas intervenções. Queremos, sim, construir um mundo mais digno. E os dados da ciência do comportamento vêm sendo profícuos em nos ensinar a como fazer isso. Mas isso depende da capacidade de nossos interlocutores superarem preconceitos históricos e ouvir o que temos a compartilhar à luz do atual desenvolvimento da Análise do Comportamento e do behaviorismo skinneriano. Basta uma rápida pesquisa nos anais de nossos Encontros para notar nossa preocupação com temas que afligem a sociedade e que poderão comprometer a sobrevivência de nossa cultura, entre os quais estão justamente as mais variadas formas de punição.
Sabemos que os termos técnicos da Análise do comportamento por vezes impedem a adequada compreensão de nossa ciência. Mas a ABPMC estará sempre de portas abertas para esclarecer dúvidas, dialogar com colegas cientistas de outras áreas e com qualquer interessado na compreensão de nossa abordagem.
[Endossam este artigo Denis Zamignani, vice- presidente da ABPMC e diretor do Núcleo Paradigma de Análise do Comportamento; Roberto Alves Banaco, membro da diretoria da ABPMC, professor titular da PUC-SP e coordenador acadêmico do Núcleo Paradigma de Análise do Comportamento; Paulo Roberto Abreu, mestrando do programa de Pós-Graduação em Psicologia Experimental da USP e associado da ABPMC; e Juliana Helena dos Santos Silvério, mestranda do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Experimental: Análise do Comportamento da PUC-SP e associada da ABPMC]
******
Presidente da Associação Brasileira de Psicoterapia e Medicina Comportamental (ABPMC) e docente do Departamento de Psicologia Experimental da USP