Há uma moratória mundial contra a caça às baleias (baleação). O Brasil, que já foi um grande promotor da atividade, ratificou o acordo e, desde 1986, a baleação foi banida das águas territoriais brasileiras. Nem todos, porém, agiram do mesmo modo, de sorte que alguns países ainda ignoram a moratória, enquanto outros pressionam pela sua suspensão. Cabe registrar que nenhum desses países é “subdesenvolvido” ou abriga populações esfomeadas – ao contrário, entre eles estão algumas das nações mais ricas e poderosas do mundo. O caso mais notório é o do Japão.
O governo japonês sempre encobriu a caça às baleias com a desculpa esfarrapada de que os indivíduos abatidos seriam usados em pesquisas científicas. Em 2008, após o governo australiano ter divulgado imagens de navios japoneses matando baleias de modo indiscriminado (mães e filhotes, por exemplo), o governo do Japão decidiu remover o véu da hipocrisia – embora, claro, não tenha se pronunciado contra a matança (ver matéria “Caça às baleias abre crise entre Japão e Austrália”, publicada pela Folha de S.Paulo, em 8/2/2008).
Atualmente, além do Japão, a Noruega e a Islândia também promovem a matança de baleias (ver matéria “Reunião internacional sobre caça a baleias reacende debate sobre ações de Japão, Noruega e Islândia”, publicada pelo Globo, em 12/7/2011). Enquanto isso, países como a Coreia do Sul, Rússia e China pressionam a Comissão Baleeira Internacional (CBI ou IWC, na sigla em inglês) em favor da liberação de cotas para abate.
O poder destrutivo do ecoturismo
A baleação é uma atividade covarde e grotesca, assim como é a caça de um modo geral. Cabe ressaltar, no entanto, que outras atividades humanas atormentam a vida dos cetáceos (baleias, botos, golfinhos etc.). Algumas dessas ameaças são relativamente óbvias e fáceis de detectar, como o derramamento de óleo e o acúmulo de lixo não-biodegradável em alto mar (ver matéria “Comissão Baleeira Internacional discute ameaça do lixo plástico nos oceanos”, publicada pela Folha de S.Paulo, em 11/7/2011). Mas nem sempre é assim, pois algumas ameaças são perigosamente “crípticas e silenciosas” (para nós!), como é o caso do turismo e do uso do sonar. Não é de estranhar, portanto, que a grande imprensa dificilmente reporte o impacto negativo dessas atividades – para uma exceção recente, ver a matéria “Ecoturismo afeta recifes de corais em Porto de Galinhas”, de Renato Castroneves, publicada pela Folha de S.Paulo, em 30/7/2011.
O número de ecoturistas interessados no avistamento de cetáceos aumentou muito nos últimos anos. Todavia, diferentemente do que ocorre com o avistamento de aves, uma atividade bem mais antiga, a observação ao ar livre de baleias, botos ou golfinhos tende a se concentrar em algumas poucas áreas. Isso decorre, em boa medida, de certas particularidades biológicas desses animais, como o hábito migratório e o estilo de vida exclusivamente aquático. No caso brasileiro, uma das áreas mais importantes é o litoral de Santa Catarina, embora o litoral sul da Bahia, o arquipélago de Fernando de Noronha e o rio Negro, nas proximidades de Manaus, entre outros lugares, também atraíam visitantes (ver artigo “Baleias jubarte no litoral baiano e em Abrolhos”, de Diana Gonçalves Simões, publicado pela revista Eco-21, em julho de 2005).
Ainda em oposição ao que se passa com os observadores de aves, muitos dos quais são verdadeiros naturalistas amadores (ver o caso do sítio eletrônico WikiAves, idealizado por amadores e que representa hoje um dos exemplos mais impressionantes de empreendimento cooperativo mantido por voluntários), os aficionados pelo avistamento de cetáceos são quase sempre turistas comuns e ocasionais. Como tal, eles parecem mais interessados em “aventura e adrenalina” do que em registrar os hábitos de vida dos animais, como acontece com frequência entre os observadores de aves.
O caso da APA Baleia Franca
O aumento no número de ecoturistas tende a gerar conflitos, seja em unidades de conservação terrestres ou marinhas. O problema se agrava quando os agentes econômicos envolvidos (agências de viagem, donos de hotéis e restaurantes etc.) procuram maximizar os lucros no curto prazo. Com isso em mente, os agentes pressionam em favor de cotas cada vez mais altas (algo do tipo “quanto mais gente, melhor”) e licenças de visitação e permanência ainda mais frouxas e tolerantes (afinal, “a satisfação do cliente vem em primeiro lugar”). Não custa lembrar: o aumento no número de visitantes tem impactos fortemente negativos sobre qualquer habitat (terrestre, marinho ou de água doce), podendo resultar em degradação e perda de atrativos. A ironia dessa história é que o excesso de hoje costuma resultar em decadência e perda de visitantes em futuro próximo. Uma lição que muitos agentes econômicos insistem em ignorar.
Como uma tentativa de compatibilizar a visitação com a proteção à vida selvagem, o governo federal tem procurado (ainda que tímida e tardiamente) disciplinar o ecoturismo. Em termos formais, isso inclui a promulgação de medidas que visam a ordenar e regulamentar a atividade. Foi o caso, por exemplo, da Instrução Normativa nº 102, de 19/6/2006, que o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) promulgou visando a disciplinar o turismo de avistamento dentro dos limites da Área de Proteção Ambiental (APA) da Baleia Franca, uma unidade de conservação federal situada no litoral de Santa Catarina.
O principal objetivo da medida era tentar compatibilizar a atividade turística com certas necessidades vitais dos cetáceos, os quais, é bom que se diga, não estão ali propriamente a passeio – as baleias-francas migram até o litoral catarinense para fins reprodutivos. Com a medida, o Ibama simplesmente estabeleceu algumas restrições às atividades náuticas e recreativas durante a estação reprodutiva das baleias, entre junho e novembro. A visitação continua permitida; pede-se apenas que as embarcações motorizadas com turistas não transitem por determinados setores da APA. O objetivo da medida não foi proibir a visitação, apenas colocar um pouco de ordem na casa.
Ondas sonoras letais
Os problemas que atormentam os cetáceos não são causados apenas por brasileiros nem advêm apenas da indústria do turismo. Ainda em 2006, pouco depois da publicação da referida instrução normativa do Ibama, uma decisão judicial promulgada nos Estados Unidos chamou a atenção da opinião pública internacional para um problema ainda mais grave: o uso indiscriminado de sonar por embarcações militares (ver matéria “Sonar banned in U.S. Navy exercise to protect Hawaii whales”, publicada pela National Geographic, em 6/7/2006). De acordo com a decisão, a Marinha dos EUA deveria suspender o uso desse tipo de equipamento durante a realização de exercícios militares, em especial o chamado sonar ativo de baixa frequência (sonar LFA, na sigla em inglês).
O sonar é um equipamento que emite ondas sonoras capazes de percorrer dezenas ou mesmo centenas de quilômetros, revelando a presença de objetos ao longo do trajeto – um submarino inimigo, por exemplo. O sonar LFA emite ondas particularmente danosas. Pesquisas de campo têm mostrado que as baleias, golfinhos e outros cetáceos – animais que se orientam e se comunicam por meio da emissão de ondas sonoras – podem perder o senso de direção ou ter problemas graves de saúde, como hemorragias na cabeça, depois de expostos às ondas emitidas por um sonar. Isso talvez explique por que a presença de cetáceos encalhados na praia é observada com maior frequência em regiões que pouco antes serviram de palco para exercícios militares.
Ao usar o sonar LFA em uma região que sabidamente abriga populações desses animais, a Marinha dos EUA estaria, ainda de acordo com o parecer judicial, violando de modo “arbitrário e caprichoso” a legislação do próprio país. A decisão foi fruto de um processo jurídico movido pelo Conselho de Defesa dos Recursos Naturais (NRDC, na sigla em inglês), entidade ambientalista estadunidense que luta pelo bem-estar animal (ver artigo “Protecting whales from dangerous sonar”, publicado no sítio do NRDC, em 10/6/2008).
Medidas simples podem surtir efeito
De acordo com a decisão judicial de 2006, as partes envolvidas (isto é, a Marinha dos EUA e o NRDC) deveriam buscar um acordo definitivo sobre a questão. Cabe ressaltar que os ambientalistas apresentaram várias sugestões, uma das quais simplesmente pedia que os exercícios militares não fossem mais conduzidos nas proximidades dos sítios reprodutivos de cetáceos. Uma sugestão, cá entre nós, bastante razoável. Mas a Marinha não gostou e recorreu. Em 2008, uma nova decisão judicial deu-lhe ganho de causa, sob a alegação de que a suspensão do uso do sonar prejudicaria os exercícios navais e, portanto, o treinamento dos marinheiros (ver matéria “Supremo dos EUA analisa uso de sonar pela marinha”, publicada pelo portal Terra em 8/10/2008). A esperança de quem luta pelo bem-estar animal é que, com o fim do obscurantismo que caracterizou o governo de George W. Bush (2001-2009), acordo satisfatório e inteligente possa vir a ser costurado em futuro próximo.
E no Brasil, como será que estão as coisas? Por um lado, vale notar que praticamente inexistem matérias publicadas na imprensa que chamem a atenção para qualquer tipo de barbeiragem ambiental envolvendo setores das Forças Armadas. (Em sentido amplo, isso inclui, além de tropas federais, como Exército, Aeronáutica e Marinha, tropas estaduais e municipais, como os bombeiros e as chamadas polícias ambientais.) Não que tais barbeiragens não existam, pois existem, mas talvez por inépcia da imprensa. Com relação especificamente ao uso de sonar, é fato que a frota da Marinha do Brasil é de dimensões bem inferiores à frota dos Estados Unidos; ainda assim, no entanto, cabem algumas perguntas – por exemplo, os comandantes dos navios brasileiros têm noção dos impactos negativos que podem provocar? Mais especificamente, será que os exercícios da frota brasileira são realizados tendo-se em mente a preocupação de minimizar os impactos ambientais negativos associados a tais atividades?
Para quem não está acostumado a fazer perguntas, não custa repetir: pensar e discutir sobre os problemas pavimenta o caminho em direção a soluções duradouras. E nem sempre essas soluções são caras e complexas. Na verdade, medidas simples e acessíveis podem evitar muitas barbeiragens provocadas por atividades humanas insensatas, desde o afundamento de submarinos atracados (ver matéria “Escotilha aberta ajudou a afundar submarino Tonelero no Natal”, publicada pela Folha de S.Paulo, em 7/2/2001) à morte desnecessária de baleias, botos, golfinhos e tantos outros animais que dividem o planeta conosco.
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[Felipe A. P. L. Costa é biólogo e autor de Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2003)]