Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Por que ainda não foram condenados?

Duas respostas são possíveis:

Primeira: porque o júri ainda não ocorreu;

Segunda: quem disse que eles ainda não foram? Só falta publicar a sentença.

Pensamos que a memória da vítima Isabella também merece respeito, não só com a punição de seus algozes como também com a absolvição de acusados que sejam inocentes, em especial de seu pai, a quem, aparentemente, tanto amava.

Alguém já pensou no sofrimento de um filho que assiste, sem nada poder fazer, ao sofrimento de seu pai, acusado de ato contra si, e que não é verdadeiro?

O holocausto de filhos é algo relatado na literatura, inclusive religiosa, há muito tempo. Para ficarmos em dois exemplos, lembremos:

a) Abraão tentou matar Isaac;

b) o rei troiano Agamêmnon tentou sacrificar (ou sacrificou) sua filha Ifigênia.

Nos dois casos acima, no entanto, os dois pais estavam atendendo exigências de deuses e, portanto, agiram em obediência: Abraão, a Javé, e Agamêmnon a um oráculo que lhe foi transmitido por Calcas.

Projeção para comportamentos

No caso de Alexandre Nardoni, pode-se dizer que ele obedecia, se é que obedeceu, a alguém? Ora, não sendo esse alguém um deus (a quem é impossível o humano resistir), ele poderia e deveria ter resistido. Embora, em qualquer caso, sua conduta não fosse menos culpável.

Psicologicamente, nos casos de sacrifícios de primogênitos, segundo Junito de Souza Brandão [Mitologia Grega, vol. 1, Vozes, Petrópolis, 1990, p. 94], ‘trata-se, ao que tudo faz crer, de uma repressão patriarcal: obtida a submissão, o ato se dá por cumprido e o opressor por satisfeito’.

Sempre que um crime é cometido, uns dos primeiros questionamentos a ser feito pelo investigador é: que benefício (que pode ser uma mera satisfação interna) buscou o seu autor?

No caso Isabella, é uma pergunta que ainda não foi respondida: que motivo(s) teriam o pai, a madrasta, a tia e os avós de Isabella para a quererem morta? Isabella morta deixaria alguma herança? Isabella viva era um estorvo (emocional e/ou financeiro) para a família Nardoni?

Do que se sabe, e sabemos muito pouco, a criança não representava qualquer empecilho à felicidade e harmonia dos seus familiares.

Sabe-se que o passado de uma pessoa não implica, necessariamente, o seu modo de agir no futuro, mas serve, contudo, de projeção para possíveis comportamentos. Quem sempre foi violento, pode, mais facilmente, no futuro, voltar a repetir esse comportamento, embora possa nunca mais vir a fazê-lo.

Psicologia pode ajudar?

Já que não se conhece nem um ato de maus tratos praticado pelo pai, madrasta, tia e avós paternos de Isabella contra a mesma, há todo um manancial de inferência a indicar que seu pai, dificilmente, seria o ‘monstro’ pelo qual hoje é tido, capaz de arremessar sua filha pela janela.

Prova maior dos antecedentes da família Nardoni é o comportamento da própria mãe de Isabella, que sempre permitiu que a filha ficasse na companhia de seu pai. Não há registro, sequer de memória materna, de violência contra sua filha. Até porque, se houvesse, ela não permitiria que a filha acompanhasse, como sempre permitiu, a sua família paterna.

E o que dizer do próprio comportamento de Isabella? Se ela fosse maltratada, será que acompanharia aqueles tidos por seus algozes? A princípio, não, pois sempre queria estar com eles.

É claro que se entende o sofrimento da mãe da vítima e que as circunstâncias não são favoráveis ao pai. Não vamos sequer pedir que a própria mãe faça uma releitura de seu pensar, especialmente verificando o passado do pai de sua filha e o comportamento do mesmo em relação a ela, isto pelo simples e singelo fato de que a mãe não ‘acusa’ o pai de condutas anteriores que pudessem explicar a atrocidade contra a criança.

E os profissionais da psicologia, será que não podem ajudar?

Um carneiro imolado em seu lugar

Para que se prove a existência de um crime, deixou, há mais de dois mil e quinhentos anos, Górgias [A defesa de Palamedes, Sofistas, Testemunhos e Fragmentos, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2005, p. 139], a seguinte lição:

‘Porventura me acusas com um conhecimento preciso ou baseado em conjecturas? Se é com um conhecimento preciso, sabes, por teres visto ou por teres participado ou por te teres informado junto a alguém que participou? Se foi por teres visto, diz a estes juízes [a maneira], o lugar, a altura, quando e onde e como viste; se foi por teres participado, estás sujeito às mesmas acusações; se foi por teres ouvido de que participou, que essa pessoa avance, se mostre, testemunhe, seja ela quem for, pois a acusação baseada num testemunho é, assim, mais digna de crédito; mas, até agora, nenhum de nós está a apresentar testemunhos.’

No caso Isabella, não temos ninguém com conhecimento preciso, pois ninguém sabe por ter visto, ou por ter participado ou por ter sido informado por alguém que participou.

Restam as conjecturas (‘considerar [algo] como provável, com base em indícios; supor, presumir, deduzir’, segundo Houaiss).

Apenas para ilustrar o que se é capaz de construir mentalmente, sem provas, para o bem ou para o mal, façamos um paralelo entre o caso concreto e a literatura, assim como se aceitam como reais as palavras de Antígona, imortalizadas por Sófocles: poderíamos chegar ao absurdo de afirmar que Isabella está viva e é sacerdotisa em algum templo, como foi o caso de Ifigênia. Que algum deus se apiedou de sua alma e a salvou e que um dia ela voltará. Tendo sido imolado em seu lugar um carneiro!

A roda dos ordálios

Não iremos mais longe com isso. No entanto, fiquemos com o pouco que se sabe:

a) que pai não subiria calçado na cama da qual sua filha foi jogada? (daí as marcas da sandália na cama).

b) que pai não olharia pela janela por onde a rede foi cortada e sua filha arremessada? (daí as marcas na sua camisa).

c) e as manchas de sangue que não são conclusivas?

d) você, num momento de desespero, não seria capaz de ligar para o seu pai ao em vez de ligar para a polícia?

Essas, contudo, são as provas que há.

Como o crime foi bárbaro, o comportamento das autoridades envolvidas no caso tem sido típico de Pilatos: entreguemos a decisão ao júri. E o júri, que pouco ou nada atenta para as provas, costuma fazer, do preto, branco, ou vice-versa. Fato que deixa alguns com a consciência tranquila, mesmo sabendo que um inocente foi condenado.

Quando se pergunta ao promotor de Justiça que atua no caso sobre as provas de que dispõe, ele se restringe a dizer algo do tipo: ‘Iremos mostrá-las perante o júri.’

Em Direito, na fase processual, vige um princípio que diz que, na dúvida, deve-se decidir em favor da sociedade (in dubio pro societate).

O que dizer, contudo, do círculo vicioso criado pelo binômio Ministério Público – Imprensa?

O promotor de Justiça disse que foram o pai e a madrasta, noticiou a imprensa. Toda a imprensa sabe e o clamor público sustenta, que foram os pais, dirá depois o promotor.

É a volta da roda dos ordálios!

Esperar pelo tempo

Não é o Ministério Público (órgão acusador) que tem que provar que os Nardoni mataram um dos seus, mas os Nardoni que têm que provar que não mataram.

Como construir uma prova negativa?

Socorramo-nos, uma vez mais, de Górgias [A defesa de Palamedes, Sofistas, Testemunhos e Fragmentos, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2005, p. 99], quando diz:

‘Os juízes, que presenciaram o crime e não dispõem de testemunhas diretas dos fatos ocorridos, ficam limitados às palavras ouvidas, e as palavras não são as realidades. É num mundo de discursos, feito de palavras, que os mesmos juízes são chamados a decidir, e aquilo com que se deparam é a maior ou menor força persuasiva dos argumentos proferidos pelas partes contrárias. Num e noutro contexto, é primordial a importância do domínio da arte retórica, em todos os campos em que se desenrola o jogo da vida social dos indivíduos.’

Não temos dúvidas de que os juízes (no caso, os jurados) já estão plenamente convencidos, depois do ‘trabalho’ brilhante da imprensa e do Ministério Público, ou vice-versa, de que, realmente, foi a família Nardoni que sacrificou a pequena Isabella, razão pela qual é praticamente impossível que venha a ter alguma chance de terem as provas contra si produzidas devidamente sopesadas e aferidas com a devida isenção e o valor que elas merecem.

Se, na fase processual, vale a dúvida em favor da sociedade, no caso do júri popular vale, absolutamente, a condenação baseada na dúvida.

Aliás, a própria prisão preventiva do casal Nardoni é mais um clamoroso exemplo de injustiça que vem sendo praticada contra ele.

Hoje, os Nardoni são os únicos ‘criminosos’ de bons antecedentes, com endereço fixo, que os tribunais vêm mantendo presos, tudo isso para não ficarem mal na foto, digo, com a imprensa.

Por fim, caro leitor, se existissem apenas três possibilidades [quem matou Isabella: 1) seu pai e sua madrasta ou 2) o leitor, ou 3) o papa?] e nós fôssemos os julgadores, não teríamos a menor dúvida em optar pela primeira possibilidade. Entretanto, como existem outras possibilidades, especialmente a de que se venham a condenar inocentes sem provas, melhor absolvê-los, neste momento, e esperar pelo tempo que, como diz o sábio, ‘é o senhor de todas as coisas’.

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Procurador da República, São Paulo, SP