Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Portal adere ao estilo faroeste

O estilo ‘atire antes pergunte depois’ consolidado nacionalmente pela revista Veja faz escola rapidamente na imprensa nacional. Vejam a pérola de bom jornalismo publicada no sábado (20/5) no portal Terra com direito a ‘chamada de capa’:

Notícia nada corriqueira: um cantor relativamente famoso, com algumas centenas de milhares de CDs vendidos, é acusado de estuprar uma adolescente de 17 anos. Coisa que – comprovado o crime e cumpridas as leis – deve render ao menos uma década de cana para o suposto tarado, sem falar na completa desmoralização e no provável fim de uma carreira de sucesso.

A notícia, no entanto, já começa bem: diz que ‘a Polícia Civil da cidade de Goiás oficializou o inquérito nessa sexta-feira’. Para quem não sabe, ‘cidade de Goiás’ – antiga capital do estado homônimo e também conhecida como ‘Goiás Velho’ – é um pacato município histórico com cerca de 30 mil habitantes, a 140 km da capital Goiânia. Presume-se, portanto, que o suposto crime teria ocorrido por lá.

No parágrafo seguinte, vem a surpresa: ‘A denúncia foi feita na madrugada de quinta-feira durante o plantão do 2º Distrito Policial de Aparecida de Goiânia’. Ops! Aparecida de Goiânia é uma cidade bem maior, vizinha à capital (20 km na direção oposta à de Goiás Velho). Se a moça foi violentada num motel perto de Aparecida, o que faz o inquérito lá em Goiás Velho? Provavelmente deve estar faltando trabalho para os investigadores na terra de Cora Coralina e eles resolveram dar uma mão aos atarefados colegas das vizinhanças da capital.

A coisa melhora mais adiante: o chefe do Departamento de Comunicação da Polícia Civil de Goiás informa que ‘a amiga da garota nega essa versão dos fatos. Uma fala a outra desmente’, conforme declarou em entrevista ao – pasmem ! – jornal cearense O Povo. Deus do céu! Tanta gente mais perto do fato e quem consegue furar a turma a ganhar uma exclusiva do tira é um repórter da distante Fortaleza?!

Vamos ao site de O Povo e encontramos a notícia contendo as tais declarações do delegado Norton Ferreira. Com um detalhe nada desimportante: no finalzinho do texto está citada a fonte como sendo ‘das agências’. Ou seja: ao contrário do que informa o portal Terra, o delegado não declarou nada ao jornal cearense, do qual muito provavelmente nunca ouviu falar. Alguma agência de notícias (não nos informam qual) distribuiu a nota e O Povo apenas a divulgou. Aliás, com um texto bem melhor redigido que o do portal Terra, mas isso não vem ao caso agora.

O fato é que o cidadão José Roberto Ferreira, 40 anos – também conhecido pelo nome artístico de Marrone – tem sua intimidade escancarada e a reputação colocada em questão num dos mais importantes portais de internet do Brasil mediante uma apuração absolutamente tacanha do ocorrido. Ninguém entrevistou a suposta vítima ou as testemunhas, ninguém ouviu o acusado, ninguém falou sequer com o delegado responsável e – obviamente – nenhum editor, seja no jornal ou no website, considerou se existem evidências sólidas o suficiente para acusar um cidadão (respeitável até prova em contrário) de estupro contra uma menor de idade.

A quem chamar?

De agora em diante, a acusação provavelmente se espalhará por todo o país, citando desta vez como fonte o portal Terra. Para dar um fecho de ouro ao evento, só falta o Terra divulgar uma nota oficial nos seguintes termos:

‘Submetido a uma perícia contratada pelo site, as informações apresentaram inúmeras inconsistências, mas nenhuma suficientemente forte para eliminar completamente a possibilidade de conterem dados verídicos. Se pelo menos uma parte desse material for verdadeira, o cantor Marrone estará a caminho da desintegração. Isso, é claro, se ainda mantiver as aspirações a se tornar um artista sério. Se o material for fruto de falsificação, a garota de 17 anos vai afundar-se ainda mais na confusão policial na qual se meteu.’

Nos anos de chumbo, Chico Buarque nos recomendava ‘chamar o ladrão’ para nos proteger ‘dos homens’ em suas negras viaturas.

Na democracia, quem devemos chamar para nos proteger da irresponsabilidade da imprensa?

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